quarta-feira, 29 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/7/2015)

Crítica/ “O campo de batalha”
Guerra cênica com diálogo de mudos 

No texto de Aldri Anunciação, dois soldados, em trégua na batalha por falta de armamento, discutem as razões de serem inimigos. Se de um lado, há motivações econômicas, de outro, o patriotismo parece prevalecer. No front , temporariamente sem munição, resta aos dois combatentes uma única bala, aquela capaz de exterminar o inimigo de quem a detenha. Ter o artefato torna seu possuidor tão poderoso no domínio enganoso desta guerra a dois, deslocando os oponentes para falsa refrega no campo das ideias e para o fracasso no embate com o absurdo. A atualização das referências fica por conta do roubo da água do rio Amazonas por potências estrangeiras (a crise hídrica fica contemplada), e da voz em off que divulga os comandos e das imagens que reproduzem as escaramuças (conexões circunstanciais com os jogos de guerra digitais). Qualquer que seja a inspiração direta do autor, e a lembrança à espetacularização da guerra é inevitável, pouco se avança na sua exploração dramática. Marcada pelo movimento pendular de afirmação e contestação, superioridade e  submissão, a narrativa se atrela à redundância de um entrechoque sem contrastes. O diálogo se estabelece distante de qualquer tensão, física ou emocional, na guerra suspensa de vozes de dissonância apenas aparente. O que as unifica é a sucessão de imagens banalizadas por observações sentenciosas e inspirações requentadas. A explosão que provoca a perda sucessiva dos membros dos combatentes, restando apenas as cabeças, deixa a incômoda sensação de        um Beckett tardio. A surpresa fica por conta da direção distribuída por três: Marcio Meirelles, Lázaro Ramos e Fernando Philbert. Essa profusão de nomes talvez tenha contribuído para que a montagem não tenha identidade, apenas conseguida, e muito precariamente, na fidelidade de sua realização com a ingenuidade da dramaturgia. A gangorra do cenário de Nello Marrese traduz a oscilante disputa e alternância da força argumentativa dos oponentes, numa composição visual complementada pelos paraquedas presos aos seus corpos. Se a luz de Jorginho de Carvalho reforça o impacto agressivo da ambientação, pelo menos no início, a projeção de vídeos é, não só tecnicamente precária, como se revela um elemento ineficiente ao contrapor imagens de guerra ao esfacelamento corporal dos duelantes. Rodrigo dos Santos e Aldri Anunciação desempenham o sobe e desce do poder circunstancial com vigor físico e recursos bem menores para driblar os tempos mortos dos diálogos.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/7/2015)

Crítica/ “Uma revista de ano - Politicamente incorretos”
Retrospectiva com humor de um ano de derrotas
O título desta montagem procura integrar os dois planos expressivos por onde a montagem circula. Pela apreensão de acontecimentos de 2014 (Copa do Mundo, debate eleitoral, manifestações de rua, falência de empresário)                        se caracteriza como revista de ano (gênero crítico-musical criado no século XIX). E pela observação bem humorada que faz dos fatos em tons  nada corretos sobre as descoloridas mazelas da vida nacional no ano passado, deixa pouca coisa fora da mira. O modo como Ana Velloso, autora, e Sergio Módena, diretor, condensam essas linguagens, reflete a precariedade dos meios de produção de que dispunham, explorando-a como o próprio argumento da encenação. A cena inicial é a completa tradução desta unidade de forma e meio. O elenco expõe os poucos recursos disponíveis, reproduzindo de maneira bizarra a cerimônia canhestra de abertura da Copa. É o pontapé para a sequência de quadros, intercalados com paródias de músicas conhecidas, que comentam a hipocrisia do politicamente correto e a liberdade de romper os seus restritivos limites. Não sem razão, que as melhores cenas são aquelas com comicidade demolidora sobre opiniões bem pensantes. O voo que reúne várias “minorias”, que se desdobram em múltiplas incorreções, é de humor avassalador. Referências ao “bolo afrodescendente” e à velhinha na plateia com suas inconvenientes intervenções, além do X-Man brasileiro e do gari entrevistador, parecem suficiente para atender parte da proposta. Mas não é o bastante. Os percalços de produção, que o elenco reitera em cena, menos como justificativa, e mais como apropriação utilitária, restringem os textos vivos a esquetes fragilmente interligados. O bom humor, que se transfere às músicas, também se ressentem da modéstia dos recursos, impedindo que se alcance a sonoridade de uma revista. Todos elementos, executados com empenho e critério, sofrem com a verba limitada. A direção musical de Wladimir Pinheiro faz milagres com um teclado. Bia Gondomar, Sergio Módena e Gustavo Wabner inventam, com um mínimo de adereços e figurinos, de Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues, a ambientação cênica. O elenco defende, com a bravura de estar no palco, apesar de tudo, os bons momentos da revisão de um ano com tão poucos bons momentos. Ana Velloso demonstra seu temperamento cômico, não somente nos textos, mas como atriz. É divertida a sua imitação da candidata “verde”. Cristina Pompeo, com ótima voz, atira os mais certeiros dardos contra os problemas expostos pelo espetáculo. O ágil coreógrafo Édio Nunes tem participação destacada no quadro “De frente com o Gari”. Cristiano Gualda, uma presença competente, Hugo Kerth, que faz caricatura de um carnavalesco, e o músico Wladimir Pinheiro, completam o elenco desta divertida revista de um ano politicamente incorreto.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/7/2015)

Crítica/ “Domando a megera”
Mímicas para comentar o machismo

A comédia de Shakespeare, que submete a irascível Catarina à truculência disciplinadora de Petrucchio, é interpretada, muitas vezes ao longo dos cinco séculos desse embate entre língua ferina e mão pesada, como demonstração masculina de poder. O grupo Nós do Morro desconfia que a megera foi domada pelo machismo, ao ponto de revelar dúvidas que justifiquem sua encenação e um quase pedido de desculpas para o fazer. O tradutor e adaptador Luiz Paulo Corrêa e Castro e o diretor Fernando Mello da Costa adotam, cenicamente, posição de desconfiança em relação às atitudes do pretendente à mão da jovem, deixando evidente, em pelo menos dois momentos, a extensão de suas suspeitas. Talvez para criticar a possível incorreção política shakespereana, a trama seja duplicada por atores que conduzem a ação e por palhaços que mimetizam a representação convencional. É uma possibilidade de atenuar as indecisões e saída para encontrar a expressão atualizada de um clássico. Com trilha original e arranjos de Gabriel Moura, a montagem expande, no namoro com o musical,  a intenção de se comunicar mais diretamente e de forma popular com variadas plateias. O que não deixa de funcionar pela dinâmica que os dois planos narrativos impõem com seus ritmos e linguagens próprios. O dispositivo cenográfico de Fernando Mello da Costa, um tablado com anteparo, atende à funcionalidade dos quadros duplos, em contraste com a  rusticidade da madeira. Renato Machado confere luminosidade expandida ao espaço. O figurino de Kika Medina é um tanto irregular na profusão de estilos das múltiplas roupas. A preparação corporal, direção de movimentos e coreografias de Marcia Rubin são parcialmente executadas pelo elenco, que mostra alguma rigidez no desenho dos gestos. A pouca intimidade com o canto leva as vozes claudicantes dos atores a  tornar inexpressiva a difícil partitura. Nem sempre o dinamismo que o diretor imprime à ação dos intérpretes em contraponto a dos clowns funciona de modo unívoco como diálogo de atuações e paralelismo de contrastes. As quebras narrativas provocam fracionamento na evolução do entrecho, desequilibrando cada um dos planos, ameaçados de ganhar autonomia e independência entre eles. A dificuldade de integração é ainda mais evidente nas distinções no elenco. A equipe dos clowns se expõe com os sinais enfaticamente trocados de seu código silenciado, enquanto os demais atores, em dissonância com a riqueza da palavra, parecem tentar dissimular o seu real sentido. Os 26 atores e três músicos desempenham seus papéis com a disciplina de um coletivo, que tem em Melissa Arievo (Catarina) e Marcelo Mello (Petrucchio) os destaques pelo protagonismo e Hugo Alves (Grumio) pela figura cômica.             

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/7/2015)

Crítica/ “Killer Joe”
A violência fronteiriça da banalidade

O texto de Tracy Letts, que se imagina mergulhar na América profunda, com seus outsiders encharcados de cerveja e desvios morais, é pouco mais do que um tiro de festim, prosaicamente diabólico e sem mira, em pretenso alvo provocativo. Um matador de aluguel é contratado por um homem para matar sua mãe, e assim receber o seguro e pagar dívida com traficantes. Toda a sua família é envolvida na trama, com direito a insinuações de desejo entre irmãos, mútuas traições e inescrupulosas emoções fronteiriças. O plano não dá certo, mas já de início se percebe o fracasso na construção dos personagens, fantoches a serviço da ação direta sobre um painel esquemático de violência. Letts investe na moldura que delimita o efeito, tornando mecânicas as figuras que movimentam o quadro. Esse retrato realista na aparência de verdade e acintoso na indução à repulsa, se desfaz no comportamento daqueles que o autor pretende representar como expressão do mal ao igualá-los na miséria humana. Antes de ser o drama psicológico que o roteiro gostaria de ser, “Killer Joe” se assemelha a pastiche involuntário de um “grand-guignol” (espetáculo caracterizado pelo bizarro com pretensão a criar pânico e horror). Mário Bortolotto, fiel à sua dramaturgia e carreira como encenador, está bastante à vontade para transpor ao palco esta narrativa, em tradução de Maurício Arruda Mendonça, com interpretações intensas e imagens brutalizadas. O diretor não economiza na crueza verbal e destempero físico para ampliar um pouco mais as fronteiras da indisfarçável misoginia e fúria empostada do autor. Sob a perspectiva da coerência e identidade, Bortolotto segue, em mais esta montagem, a mesma trilha das fotográficas provocações cênicas  que realiza com seu grupo Cemitério de Automóveis em São Paulo. Desta vez, há um cuidado maior com  a cenografia, assinada por Mariko e Seiji Ogana, que reproduz com alguma atmosfera o ambiente de um trailer. A sonoplastia e inserções sonoras, além dos efeitos especiais e coreografia das lutas, revelam um acabamento apreciável, que nem sempre se encontra na trajetória de Bertolotto. O maior destaque da direção recai sobre o trabalho do coeso e integrado do elenco. Fernão Lacerda reproduz a tibieza do chefe da família com convincente hesitação. Gabriel Pinheiro mantém o filho em nível de tensão alto. Ana Hartmann compõe a filha emocionalmente frágil com toques de perversidade. Carcarah, o assassino de aluguel, conduz com cinismo a escalada da violência. Aline Abovsky impressiona pela preparação para a cena em que a amante é humilhada. 

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/7/2015)

 

Crítica/ “2.500 por hora”

Uma história de séculos em pouco mais de uma hora


 A proposta é reunir a evolução de 2.500 anos do teatro em pouco mais de uma hora, numa sucessão de fragmentos de textos, dos gregos a Brecht, ilustrando a permanência de uma história que continua a ser contada. Os franceses Jacques Livchine e Hervée de Lafond, autores dessa maratona para condensar uma arte duradoura de representação efêmera, recorrem à dramaturgia, elo longevo que registra mudanças e afirma a sobrevivência ao longo dos séculos. Nesta corrida contra o relógio, se faz homenagem a experiência artística que reproduz os sentimentos humanos. Com humor e alguma habilidade artesanal, a dupla Livchine e Lafond estabelece linha do tempo que inclui textos de Feydeau, Molière, Artaud, em inevitável reverência francófona, e de Tchecov, Eurípides, Goethe, Pirandello e Shakespeare da historiografia clássica. Monica Biel, a tradutora e adaptadora, assina a contribuição brasileira, com citações a João Caetano e Nelson Rodrigues, completando o quadro deste “theatre express”. O que aciona a máquina de desenrolar as cenas são situações de bastidor, como a do ator à procura do protagonismo ou a espera pela trupe da chegada de um espectador retardatário para iniciar o espetáculo. A conexão desses planos torna falsa a construção do contexto e desequilibra o peso informativo de cada autoria. Como a montagem exige rapidez nas mudanças de épocas e na alternância de climas dramáticos, aumenta o risco de quebras entre quadros e intermitência de ritmo. O diretor Moacir Chaves agrava essas discrepâncias na velocidade sequencial, equiparando pela comicidade as diferenciações de estilo. A corrida pela troca de cenários e figurinos, tarefa do elenco, também exigido pela veloz substituição dos registros interpretativos, emperra a agilidade e provoca vazios narrativos. O cenário de Sérgio Marimba utiliza formas geométricas para compor variação de mobiliário, mas em seu encaixe perdem-se segundos decisivos à fluência. O figurino de Inês Salgado, apesar da sua correção, choca-se, pela reprodução das épocas, com o despojamento dos demais elementos, incluindo a atuação despretensiosa do elenco, desvinculado de identificações. Quando o ritmo parece ajustado (como na contribuição nacional de encenar as 17 peças de Nelson Rodrigues em 3 minutos), o bom efeito inicial acaba por se esgotar pela repetição. Os atores se ressentem do constante desmonte das cenas e da descoloridas mutações dos tipos. Henrique Juliano demonstra pouca vivência de palco e  Monica Biel se revela boa tradutora. Júlia Marini sustenta sua atuação com voz encorpada. Claudio Gabriel encontra a diferença de suas intervenções na igualdade do histrionismo. Joelson Medeiros articula com autoridade as passagens por Molière,  Beckett e Nelson Rodrigues.