quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Temporada 2018


Crítica/ “A última aventura é a morte

A máquina teatral de triturar horrores contemporâneos 

Poema curto, sintético em tamanho e distendido em alcance, carregado de citações de um tempo vazio, banhado de sangue, “Nota 409”, de Heiner Muller, transposto pelo grupo Pequod para a cena e em cartaz no Teatro III do CCBB, caça, com laço de arame, silenciosa e escura massa humana, em imagens verbais de sobreviventes a dias que apenas jogam a outro. Como na dramaturgia do alemão, a sua linguagem poética está repleta de referências clássicas, literatura e filosofia, teatro e cinema, triturados pela máquina contemporânea. (“Que o solo é o abismo a vida um salto pois Deus está morto seus anjos órfãos não emprestam mais suas asas seu esqueleto gira no espaço”). Nesse percurso onírico de “passageiros que vão para o nada”, escrito em 1995, ano da morte de Muller, há um niilismo que contrasta com a dissecação de um estado de temor. Intrigante em suas alusões e complexa em seu curso, essa construção poética é sensível, parcialmente, à transferência ao palco. O diretor Miguel Vellinho não facilitou muito o acondicionamento estilístico. À frente do Pequod há quase 20 anos, Vellinho mantém a companhia como teatro de animação de raiz, buscando técnicas de manipulação e confecção de bonecos que acompanhem a evolução de público (infantil e adulto), de repertório (“O velho da horta” e “A tempestade) e de gênero (“Filme noir” e “Marina”). Na atual montagem, ampliam-se os meios expressivos e são intentadas outras narrativas, além de introduzir variadas técnicas (vídeo, performance, instalação plástica, figuração do dramático). Inquieto e desprezando as dificuldades, formais e referenciais, do original, a direção acrescentou outros tantos significados (terrorismo, queda das Torres Gêmeas) a material já tão carregado deles. Aos estilos cênicos em permanente procura do impacto da imagem, somam-se as palavras do autor, ouvidas em dissonâncias, sem a aparente intenção de as tornar audíveis como percepção. Solta, lançada como figuração, a voz é complemento ao quadro, acessória do pretendido estrondo poético. O ambiente cênico de Doris Rolemberg é decisivo na tentativa de conter em um espaço único, muitos olhares possíveis. Em dispositivo arquitetônico, em que a plateia fica de pé, envolvida por duas telas e por janelas bem acima de seus olhos, e que se abrem a cada passagem ilustrativa, têm-se estímulos às sensações, mais do que a contundência dos apelos poéticos.
Quadros virulentos de tortura com atores, ressoam em outros, como o da boneca dançarina do ventre, que ao fim do desnudamento dos véus, revela o cinto de bombas que rodeia seu corpo. Belo, instável na adaptação, de formalismo desconcertante, a produção do Pequod estabelece o encontro da poesia com os horrores até aquela que é a última aventura, a morte.

sábado, 6 de outubro de 2018

Temporada 2018


Crítica/ “Memórias do esquecimento
 
Luz sobre os subterrâneos das lembranças
Outro monólogo. Desta vez, a versão cênica do depoimento de Flávio Tavares, torturado pela ditadura militar brasileira, ato revivido em prisão do regime similar uruguaio, no finai da década de 1960 até a de 1970. O jornalista gaúcho, militante na luta política, banido da sua cidadania, alma roubada da sua utopia, sobrevivente, física e emocionalmente, das investidas contra a sua integridade e das ameaças à sua dignidade, desafia pela escrita, reviver aquilo que lhe parecia incontável. Mais do que denunciam, as descrições da violência e das arbitrariedades de um regime autoritário, as palavras de Flávio alcançam um homem acuado, sem defesas para tentar, sequer, sobreviver. O aniquilamento pretendido pelos algozes, atinge a força vital de quem considera múltiplas as mortes experimentadas nos subterrâneos da repressão e nas catacumbas de si mesmo. O diretor, ator e adaptador (ao lado de Daniela Pereira de Carvalho) Bruce Gomlevsky tratou o material escrito através do formato descritivo de origem. Relato de uma vivência dolorosa, a transcrição cênica segue com fidelidade narrativa o tom expositivo da resenha emocional do preso político. Com o palco do Poeirinha desenhado como uma caixa preta, a presença física do ator é quase estática, com a voz assumindo projeção impositiva, mas mantendo-se em ritmo constante, de poucas relevâncias e em estado de pulsação. Em movimentos curtos e deslocamentos raros, o intérprete é destacado por iluminação de cuidada intervenção de Russinho. O extenso relato, que a fixidez corporal e o diapasão da voz tornam equalizados, sofre quebras dramáticas que na leitura não ocorrem, mas na cena se deixam ver pelas dificuldades que o monodrama impõe. Bruce Gomvlesky enfrenta o desafio de se apropriar, com a precaução do comedimento, das palavras candentes de uma vida sitiada. Vence a batalha em monólogo que foge de intermediações, em busca do frente a frente de um discurso direto.