segunda-feira, 12 de abril de 2021

Apresentada em 2007 no Rio, “Terra em trânsito”, jorro de citações a intelectuais, políticos e estéticas, lançado na máquina teatral de Gerald Thomas e triturado como crônica e referência àquele momento, está de volta, em versão digital, que pode ser vista no link, com a mesma atriz (Fabiana Gugli) da estreia há 14 anos. Leia a crítica da montagem do palco.  

Máquina teatral de Thomas tritura o momento




No espetáculo de Gerald Thomas, em cena no Oi Futuro, a força da imagem da contemporaneidade, em crônica desdobrada em manifesto teatral, o diretor despeja, como num fluxo de pensamento, aquilo que pensa e aquilo de que duvida. Se a encenação é obra do acaso total, como teoriza Gerald Thomas, a vida sob sua perspectiva cênica acompanha o mesmo fluxo, manifestada como forma operística, desidratada de verdades, massacrada por mentiras. Em “Terra em trânsito”, o que aparece está se movendo em torno de uma pasta de palavras, incapaz de compreender o que se está passando, mistura de fígados expostos à trituração da atualidade, preparada para ser servida como um patê autofágico de um tempo desesperado. A cantora que se prepara no camarim para entrar em “Tristão e Isolda” se exalta, à custa de cocaína e de provocações radiofônicas de um Paulo Francis delirante, em diálogo com um cisne que andou por Woodstock e cita Haroldo de Campos. Esse cisne, um judeu de posições heterodoxas, faz contraponto à cantora que de si sabe apenas que há algo difuso que a persegue, um caudal de palavras que acossam seus sentidos, aos quais atribui migrações a lugares improváveis, como a cabeça de George Bush. Repleto de referências, “Terra em trânsito” retoma o humor no teatro de Gerald Thomas, até então restrito a “Um circo de rins e fígado”, como atenuante da visão de finitude, na qual a morte individual é espelho da morte coletiva. Ao se ver usurpada de sua voz no palco, substituída por outra cantora, a mulher confronta-se consigo mesma numa aterrorizante perspectiva de chegar ao fim, de não ter mais lugar, de sucumbir ao que as palavras e as tentativas de agir não alcançam. A metáfora se conclui. Fabiana Gugli, identificada com o estilo de Thomas de conduzir os atores, impõe coreografia nervosa e arrebatada, sem prescindir de humor sorrateiramente crítico diante da efusão verbal da personagem. A atriz vence, com a bravura de sua interpretação inteligente, as múltiplas referências, algumas delas quase secretas, como os comentários sobre o teatro de Harold Pinter, triturando-as num tom de maliciosa frivolidade. Pancho Capelletti, como a voz e o manipulador do cisne, tira o melhor partido da estranha criatura de tantas incertezas intelectuais.