sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Temporada 2020


“A Hora da Estrela”/ Palco e Tela

Na boca de cena: Imagem aérea para Clarice Lispector

Por apenas seis apresentações, “A Hora da Estrela – O canto de Macabéa” esteve em cena no Teatro 1 do CCBB. Era março, e a pandemia dizimou o espetáculo, assim como todos os outros, no momento que a temporada mal começava, e que o futuro demonstraria que inexistiria. A adaptação do livro de Clarice Lispector pelo diretor André Paes Leme, com trilha musical de Chico César, ganhava, além das sonoridades nordestinas de suas canções, dinâmica de movimentos dos três atores (Laila Garin, Claudia Ventura e Claudio Gabriel) em integração com a cenografia aérea de André Cortez. Mais do que manter a essência do literário, esta versão teatral amplia as camadas que a autora estabelece no original entre narrador e personagem, acrescentando à atuação formalismo gestual que a música comenta e a iluminação (Renato Machado) ilustra. André Paes Leme, na dupla função a que se atribuiu, desenhou moldura para “história sob calamidade pública”, “sem resposta, sem direito ao grito”. Nos traços esboçados, tenta equilibra-se entre o “relato frio” para demonstrar que “o mundo está fora de mim”, e em que Macabéa se põe fora das coisas. Essa distância, que a “miséria anônima” e o “grito de horror à vida”, afasta a personagem da possibilidade da consciência de si mesma: “acho que não sei viver”. As vozes paralelas de narrador e personagem são ouvidas no palco com a simultaneidade entre exposição, arquitetura gestual e canto. Aparentemente, foi a forma como o adaptador/diretor encontrou para, não comprometendo a “integridade” do original, se afastar de um certo neorrealismo à la Cabíria que envolve Macabéa.  


Em close: Laila Garin é Macabéa

Dez meses depois da temporada frustrada pelo terremoto epidêmico, “A Hora da Estrela” volta em transmissão pelo Canal Arte 1 e o youtube da Sarau Agência. Captada para divulgação em meio digital, permite avaliação comparativa para quem assistiu ao espetáculo em palco. Não há por que estabelecer diferenças ou até mesmo especular sobre a validade ou não desta tentativa emergencial de linguagem acrescida. Os atuais tempos teatrais são tortuosos e imprevisíveis, e as transmissões on line, esforço de alinhamento com as precariedades que plateia vazia e cena gravada provocam na relação essencial da arte cênica. A inteireza do ao vivo, evidentemente, se perde, mas a do digitalizado recompõe, em parte, a  integridade da origem, independente da forma em que foi gravado. Neste caso, há agilidade nos cortes e cuidados técnicos no registro. Numa cena fixada em imagens, cenografia e iluminação tão atuantes, os efeitos visuais se fragmentam ao ponto de se esvaziarem. A largueza da boca de cena se torna close de tela, diluindo os contrapontos à emoção controlada projetada por André Paes Leme. Quem esteve no CCBB reconhece no translado do que viu há dez meses, a força e o empenho na interpretação do elenco, e a assinatura na linha geral do conjunto cênico, mas estará, inevitavelmente, condicionado pelo filtro que os meios eletrônicos impõem à recepção. É difícil transpor o que é presente, para o imediatismo da difusão, que logo se faz passado. O frente a frente do jogo teatral  está suspenso, numa pausa já muito distendida, e que adia o enfrentamento, cara a cara, com a escalada radical de mudanças, dramaticamente, irreversíveis.

 


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Temporada 2020


Crítica/ “Lazarus”
Puzzle músico-ficcional de um tempo pop


“Lazarus” tem forma muito própria e peculiar de se perceber como musical. O puzzle músico-ficcional em que o inglês David Bowie acondiciona seu repertório de letras esquivas ao filme “0 Homem que Caiu na Terra”, do qual foi o protagonista, pode ser visto como detonador de memórias de “impermanência e morte”. Nada que se pareça, estritamente, a uma narrativa do gênero (ação e canções), muito menos a um show com citações cênicas. É tudo isso, e também mais alguma coisa: estranha, dissonante, mutante, andrógina, cheia de representações intrigantes, como os muitos rostos maquiados de Bowie. Há história, confusa e de muitos desvios, baseada em romance dos anos 60, lembrança evocada de ficção científica existencialista, mas à qual se pode atribuir identidade indelével à permeabilidade da cultura pop. São 18 canções que percorrem a vida angustiada de alienígena, que vem à Terra para salvar seu planeta em crise hídrica. Aqui, se debate entre o excesso de álcool e a incapacidade de ir embora, definitivamente. Quase pretexto para a exibição da obra musical de Bowie, “Lazarus”, em temporada no Teatro Multiplan/Village Mall, reflete e confirma as características de Felipe Hirsch como um dos poucos diretores brasileiros com gramática cênica de assinatura legível. Os meios expressivos são sofisticados e tratados de modo serial, numa sequência de quadros que se compõem como painel de sensibilização. O texto é secundário como história e coadjuvante como narrativa, integrando-se ao jogo cênico por seu contorno. Nesta montagem, as letras algo enigmáticas da trilha e essenciais na concepção original, são traduzidas apenas em alguma poucas frases musicais. Quem não é familiarizado com a língua inglesa, fica à parte. A cenografia de Daniela Thomas e Felipe Tassara propõe intervenção pulsante, com as refrações de luz (Beto Bruel) e de imagens, que se coordenam com projeções (Henrique Martins) e instabilidade do piso. Bruna Guerin (destaque), Carla Salle, Gabriel Stauffer, Jesuita Barbosa, Luci Salutes, Marcos de Andrade, Natasha Jascaklevich, Olivia Torres, Rafael Losso, Valentina Herszage e Vitor Vieira formam o elenco selecionado com competência de avaliação, qualificação técnica e frescor interpretativo. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O que é acentuado, está em paralelo ao olhar em busca de significados. É provável, que o espectador que desconheça David Bowie, possa assistir a “Lazarus” como um espetáculo realizado num universo paralelo. Mas até ele, certamente, viverá a experiência de ser levado por construção cênica de bases sólidas, e instigado pelo prazer de um mergulho na “impermanência e morte” de um tempo. O nosso.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Temporada 2020


Há sete anos estreava “Billdog, na extinta Casa da Gávea, texto do inglês Joe Bone. Hoje, no Teatro III do CCBB, com praticamente a mesma equipe, se repete a estrutura dramatúrgica com uns poucos acréscimos, entre eles, o número dois, que anuncia a versão intermediária da trilogia imaginada pelo autor. A crítica publicada em novembro de 2012 não foi retocada pela visão neste janeiro de 2020. A longevidade das duas montagem e da mesma crítica, só nos leva a pensar que a repetição de uma e de outra, nos propõe mais imobilidade do que passagem de tempo da cena teatral carioca.

Crítica/ “Billdog 2”

Apontando para a imobilidade do tempo 

A primeira impressão que esse texto do inglês Joe Bone provoca é a de que o autor circula entre a escrita e a atuação. Propõe contar história policialesca ao estilo das narrativas inglesas do gênero, com recursos de interpretação que variam da mímica à comédia em pé. O ator se desdobra em quase 40 personagens, desafiado a ilustrar a perseguição a um matador profissional. Para tanto, não há o apoio de cenografia ou de qualquer outro elemento além da própria presença do intérprete, que atua, produz ruídos e imagens de objetos e explicita as rubricas através da voz e de movimentos. A ausência de adereços e as habilidades físicas do ator solitário, coadjuvado discretamente por um violonista, são a razão dessa gadget teatral. A versão brasileira, dirigida em conjunto pelo autor e Guilherme Leme, adaptada, traduzida e interpretada por Gustavo Rodrigues, recria em 60 minutos história cheia de detalhes, algo alongada e tediosa, e que se esgota já nos primeiros dez minutos pela repetição histriônica da mímica dramatizada. Rodrigues se desdobra para equalizar o tempo cênico com o tempo de recepção da plateia para que a narrativa possa ser acompanhada com interesse e bem compreendida. Gustavo Rodrigues mergulha no desafio de tornar assimilável a historieta com visível esforço físico. O resultado, sem ser um exercício de estilo interpretativo, é um tour de force respeitável, com muito suor e preparo físico.