segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Temporada 2020


Crítica/ “Lazarus”
Puzzle músico-ficcional de um tempo pop


“Lazarus” tem forma muito própria e peculiar de se perceber como musical. O puzzle músico-ficcional em que o inglês David Bowie acondiciona seu repertório de letras esquivas ao filme “0 Homem que Caiu na Terra”, do qual foi o protagonista, pode ser visto como detonador de memórias de “impermanência e morte”. Nada que se pareça, estritamente, a uma narrativa do gênero (ação e canções), muito menos a um show com citações cênicas. É tudo isso, e também mais alguma coisa: estranha, dissonante, mutante, andrógina, cheia de representações intrigantes, como os muitos rostos maquiados de Bowie. Há história, confusa e de muitos desvios, baseada em romance dos anos 60, lembrança evocada de ficção científica existencialista, mas à qual se pode atribuir identidade indelével à permeabilidade da cultura pop. São 18 canções que percorrem a vida angustiada de alienígena, que vem à Terra para salvar seu planeta em crise hídrica. Aqui, se debate entre o excesso de álcool e a incapacidade de ir embora, definitivamente. Quase pretexto para a exibição da obra musical de Bowie, “Lazarus”, em temporada no Teatro Multiplan/Village Mall, reflete e confirma as características de Felipe Hirsch como um dos poucos diretores brasileiros com gramática cênica de assinatura legível. Os meios expressivos são sofisticados e tratados de modo serial, numa sequência de quadros que se compõem como painel de sensibilização. O texto é secundário como história e coadjuvante como narrativa, integrando-se ao jogo cênico por seu contorno. Nesta montagem, as letras algo enigmáticas da trilha e essenciais na concepção original, são traduzidas apenas em alguma poucas frases musicais. Quem não é familiarizado com a língua inglesa, fica à parte. A cenografia de Daniela Thomas e Felipe Tassara propõe intervenção pulsante, com as refrações de luz (Beto Bruel) e de imagens, que se coordenam com projeções (Henrique Martins) e instabilidade do piso. Bruna Guerin (destaque), Carla Salle, Gabriel Stauffer, Jesuita Barbosa, Luci Salutes, Marcos de Andrade, Natasha Jascaklevich, Olivia Torres, Rafael Losso, Valentina Herszage e Vitor Vieira formam o elenco selecionado com competência de avaliação, qualificação técnica e frescor interpretativo. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O que é acentuado, está em paralelo ao olhar em busca de significados. É provável, que o espectador que desconheça David Bowie, possa assistir a “Lazarus” como um espetáculo realizado num universo paralelo. Mas até ele, certamente, viverá a experiência de ser levado por construção cênica de bases sólidas, e instigado pelo prazer de um mergulho na “impermanência e morte” de um tempo. O nosso.