sábado, 25 de junho de 2022

“Tudo”: Fábula do Caos

Regras subvertidas do jogo cênico 


Rafael Spregelburd, autor de “Tudo”, em cena no Teatro Sesi, pode ser visto por sua aparente originalidade, medido por suposto pós-realismo, e avaliado por eventual manipulação narrativa. A dramaturgia desse argentino parte do jogo teatral em desdobramentos identificáveis (comédia, farsa, paródia), que adquirem significado ao surpreender pelos contrastes, dúvidas, incertezas e subversões a que chama de “fábulas caóticas”. Tratar de questões da arte, do estado ou da religião como matérias contemporâneas de traços farsescos e paródicos, atinge tom provocativo da análise, que aponta para derrocadas. O que parece truque, é um demolidor flagrante de padronização. Aquilo que se origina em comédia de costumes, se transforma em monólogos de ocultação. E dos preceitos bíblicos resta o paralelo com a vulnerabilidade humana. “Tudo” é um título que, na sua  irreverente síntese, percorre espaços sociais e “moralidades” fabulares para totalizar visão subversiva de tradicionais parâmetros teatrais e fronteiras críticas. São três cenas, introduzidas por narrador que pergunta: “Por que todo Estado vira burocracia?”, “Por que toda arte vira negócio?”, “Por que toda religião vira superstição?”. Spregelburg é cirurgicamente avassalador na autópsia em tecidos gangrenados. Os diálogos parecem levar, de início, a um sentido reconhecível, mas em seguida desviam-se para o seu significado crítico, mantendo esse dualismo de formal para reforçar a contundência da voz do autor. A desimportância de nomenclaturas para designar o que é inútil, encontra nas palavras esvaziadas suas reais intenções. 

“Tudo” converge para um ponto cego, diante do qual só resta a pergunta que encerra essa trilogia: “Como fazer para não ter medo?”. Guilherme Weber mergulhou nessas vivências contemporâneas com as mesmas ferramentas que Spregelburd demonstra ter usado na escrita. Há algo de identificável na origem das cenas, em que matizes de comédia revestem aparentes clichês narrativos, desaguando na busca de significados. O diretor interpretou esse caminho sinuoso, contrastando gestos deliberadamente grotescos do elenco a comentários irônicos. A movimentação dos atores provoca ruídos com o corpo, afinados com a dissonância projetada da palavra. Ao entrar na sala, o público se vê diante do palco despido, com traço de luz ao fundo, e cadeiras dispostas na lateral, criando expectativa de preenchimento. O vazio é do que, metaforicamente, se falará em seguida. Ao longo das três cenas, a iluminação (Renato Machado) e o dispositivo luminoso da cenografia (Diana Salem Levy) estabelecem identidade visual, identificada com as cirúrgicas incisões do diretor. O quinteto de atores – Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito – corresponde ao que lhes é proposto. Reproduzem o jogo das dualidades (corpo/palavra) com precisão, mas por sua brilhante decodificação interpretativa do gestual e certeira inteligência cênica, Dani Barros é o incontornável destaque.