domingo, 4 de setembro de 2022

Um Gênio Sem Nenhuma Certeza

Publicado no caderno “Ideias” do “Jornal do Brasil” em 10/7/1999 no lançamento do livro “A Porta Aberta”, de Peter Brook. O encenador inglês morreu em 2/7/2022.


Um Gênio Sem Nenhuma Certeza




Peter Brook está à procura do espaço vazio, a área dentro da qual pode ocorrer o novo. Despojado de intenções e sentidos apriorísticos, o vazio é de onde pode emergir a experiência nova e original, e a cada criação faz-se necessário estabelecer esse espaço puro, virgem para que sejam alcançados significados renovados. A prática teatral desse encenador inglês, exilado voluntário na França, e para quem a cena só encontra sentido na permanente redefinição do espaço criador, persegue a convergência de diversas energias inventivas para fazer desaparecer categorias pré-existentes para reencontrá-las modificadas. Em A porta aberta, livro publicado pela Civilização Brasileira, reunindo três ensaios sobre o processo de encenação, evidenciam-se as ligações do teatro de Peter Brook com a vida na forma como tenta materializar no palco elementos que retirem dela o que se confunde com o essencial, sem nunca querer imitá-la. A concentração da vida que o teatro proporciona empresta intensidade à capacidade usufruir do simulacro como uma suspensão da realidade, devolvendo pela arte a grandeza e a miséria de existir. Aos 74 anos, Peter Brook mantém a atitude de se lançar a cada encenação como se estivesse diante de uma zona inexplorada, do vazio a ser preenchido com a matéria imaterial da invenção, ainda que gravada a partir da matriz vital da realidade. No ensaio As artimanhas do tédio, Peter Brook ratifica o estado de dúvida, “a suspensão de certezas”, apostando no processo mais do que em resultados. A própria trajetória de Brook – múltipla, cheia de desvios e tocando a integralidade da arte, tal como um artista renascentista – denuncia inquietação e diversidade cultural que compõem o espectro não conclusivo de suas teorias. Cada espetáculo é único e propõe problemas inerentes à complexidade desta unidade. Com pouco mais de 20 anos, Peter Brook já estava sancionado como diretor do Royal Shakespeare Company, mas em 1970 abandonou a segurança de um currículo que inclui montagens históricas como a de Titus Andronicus e A Tempestade para se aventurar na criação do Centro Internacional de Criação Teatrais, em Paris.


O Mahabharata (1989)

A fábrica teatral de Peter Brook – o Teatro Bouffles du Nord – está instalado num prédio em estado precário no qual as paredes mostram a passagem do tempo. De lá saem espetáculos tão aparentemente contrários em sua essência quanto Os Iks – transposição cênica do estudo antropológico de Collin Turnbull sobre uma sociedade tribal africana em extinção pela fome – e O jardim das cerejeiras -, valorizando o sentido oculto da palavra em Tchecov para mostrar que os sentimentos não são inocentes. Neste Centro, o diretor mantém elenco com atores de várias etnias, que não se uniformizam, nem pela língua (ainda que o francês seja o idioma de expressão), muito menos pela padronização física (um antropólogo branco pode ser interpretado por um senegalês, e um aborígene por um escocês). 



Em O Mahabharata, a narrativa védica que contrapõe o humano ao divino para encontrar o lugar e a situação do homem no mundo, capturando “o sentimento do maravilhoso”, o elenco reflete essa panacionalidade cultural. As nove horas e meia de duração do espetáculo, divididas em três dias, eram em si mesmas uma maneira de discutir o tempo como parte da narrativa épica. A dualidade mágico-arquétipica, comparável à narrativa bíblica judaica-cristã, permite que deuses e humanos convivam num mesmo espaço de existência. Esse tour-de-force teatral identificava os movimentos dos personagens míticos enraizados na dimensão terrena, tocando a verdade de si mesmos e o sofrimento. A fantástica imagem do piso do teatro recoberto com terra vermelha servia de cenário para os rostos multirraciais, recompostos como máscaras de rara teatralidade. Na elaboração do fenômeno teatral, Peter Brook usa artifícios que ficam numa área imponderável. Como transformar o banal em sublime? De onde retirar a centelha, a faísca que desplota a equação espaço-tempo do teatro? Brook considera que são raras as obras-primas no teatro, em comparação com outras formas de arte, já que a centelha de vida que insufla interesse e originalidade à expressão cênica pé de tal maneira delicada e de difícil cultivo, que corre o risco de desaparecer ou esvaziar-se em fórmulas. Em todos os planos da criação teatral se aplicam essas premissas. No plano dos autores, Peter Brook pode até ser considerado um diretor que “respeita” o caráter “literário” do texto. Ao escolher uma peça se mantém fiel ao seu espírito, ajustando-se, contudo, a seu imaginário e à atualidade. Shakespeare , do qual encenou vários textos, é talvez dentre seus autores de eleição e ao lado de Samuel Beckett, aquele em que encontra mais ressonância com suas teorias (ou seriam explorações?) cênicas. Para Brook, Shakespeare escreve teatro para um espaço infinito em um tempo indefinido, onde cabem tantas e tão variadas interpretações. A permanência e a contemporaneidade  do bardo têm profundas relações com a ênfase que empresta às relações humanas, não se fixando na unidade de tempo nem de espaço. A poesia e o temperamento revolucionário de sua obra completam a atração irresistível que Shakespeare exerce na trajetória do encenador. 


O Grande Inquisidor (2008) 


A Tempestade é das peças shakespearianas a que mais atrai Brook ao ponto de em 35 anos dirigir três montagens, uma delas com John Gielgud com o Próspero. Na última, em 1990, com tradução francesa do colaborador constante, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, Peter Brook descreve no ensaio Não há segredos a evolução do trabalho a partir das questões propostas pela cenografia, que explica muito bem as implicações de todo o arcabouço da cena. A certeza de que qualquer adorno em um texto de tamanha qualidade seria ilustrativo e vulgar, o cenário precisaria encontrar “um campo livre para o jogo da imaginação e um lugar em que o teatro não pretendesse ser nada mais que teatro”. Na metáfora cenográfica, Peter Brook estende-se pelos outros aspectos do espetáculo, ao conseguir imprimir significado a uma área com a extensão de um prosaico tapete. Numa linguagem que, em alguns momentos se confunde com preceitos esotéricos, Brook menciona “campos de energia” a serem criados no palco, a função do diretor como aquele que desenvolve sofisticado método de escuta e de que a mutação constante do teatro nada mais é do que um processo de crescimento. Ao desenvolver a imaginação no teatro, Peter Brook circunscreve aspectos mágicos a teorias de pesquisa e explora as infinitas possibilidades do vazio, até que naquilo que mais o assombra: o tédio. A sensação de desinteresse que muitas vezes se instala nas plateias é consequência da desvinculação ao mundo a que estão ligadas. A edificação da beleza se configura como a maior das possibilidades de restaurar a vitalidade e a seiva teatrais, enquanto o ator é o veículo através do qual o edifício cênico se constrói e a quem cabe a responsabilidade de criar vínculos de imaginação. O pulo do gato da criação é difícil de captar. O bote parece sempre estar no ar e ao tentar congelar o salto perde-se a trajetória do voo. Peter Brook no ensaio O peixe dourado utiliza a imagem para tentar descobrir como aprisionar esse animal raro. Ninguém sabe como, mas deixa a certeza de que para se aproximar da captura é preciso, como explora continuamente Peter Brook, ter aguda percepção da textura da realidade, “encontrar o tecido da vida” e costurar as formas no vazio primal da criação”.    

sábado, 25 de junho de 2022

“Tudo”: Fábula do Caos

Regras subvertidas do jogo cênico 


Rafael Spregelburd, autor de “Tudo”, em cena no Teatro Sesi, pode ser visto por sua aparente originalidade, medido por suposto pós-realismo, e avaliado por eventual manipulação narrativa. A dramaturgia desse argentino parte do jogo teatral em desdobramentos identificáveis (comédia, farsa, paródia), que adquirem significado ao surpreender pelos contrastes, dúvidas, incertezas e subversões a que chama de “fábulas caóticas”. Tratar de questões da arte, do estado ou da religião como matérias contemporâneas de traços farsescos e paródicos, atinge tom provocativo da análise, que aponta para derrocadas. O que parece truque, é um demolidor flagrante de padronização. Aquilo que se origina em comédia de costumes, se transforma em monólogos de ocultação. E dos preceitos bíblicos resta o paralelo com a vulnerabilidade humana. “Tudo” é um título que, na sua  irreverente síntese, percorre espaços sociais e “moralidades” fabulares para totalizar visão subversiva de tradicionais parâmetros teatrais e fronteiras críticas. São três cenas, introduzidas por narrador que pergunta: “Por que todo Estado vira burocracia?”, “Por que toda arte vira negócio?”, “Por que toda religião vira superstição?”. Spregelburg é cirurgicamente avassalador na autópsia em tecidos gangrenados. Os diálogos parecem levar, de início, a um sentido reconhecível, mas em seguida desviam-se para o seu significado crítico, mantendo esse dualismo de formal para reforçar a contundência da voz do autor. A desimportância de nomenclaturas para designar o que é inútil, encontra nas palavras esvaziadas suas reais intenções. 

“Tudo” converge para um ponto cego, diante do qual só resta a pergunta que encerra essa trilogia: “Como fazer para não ter medo?”. Guilherme Weber mergulhou nessas vivências contemporâneas com as mesmas ferramentas que Spregelburd demonstra ter usado na escrita. Há algo de identificável na origem das cenas, em que matizes de comédia revestem aparentes clichês narrativos, desaguando na busca de significados. O diretor interpretou esse caminho sinuoso, contrastando gestos deliberadamente grotescos do elenco a comentários irônicos. A movimentação dos atores provoca ruídos com o corpo, afinados com a dissonância projetada da palavra. Ao entrar na sala, o público se vê diante do palco despido, com traço de luz ao fundo, e cadeiras dispostas na lateral, criando expectativa de preenchimento. O vazio é do que, metaforicamente, se falará em seguida. Ao longo das três cenas, a iluminação (Renato Machado) e o dispositivo luminoso da cenografia (Diana Salem Levy) estabelecem identidade visual, identificada com as cirúrgicas incisões do diretor. O quinteto de atores – Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito – corresponde ao que lhes é proposto. Reproduzem o jogo das dualidades (corpo/palavra) com precisão, mas por sua brilhante decodificação interpretativa do gestual e certeira inteligência cênica, Dani Barros é o incontornável destaque.          

        

domingo, 15 de maio de 2022

Máscaras do teatro de Gabriel Villela

“Henrique IV”: visão alegórica de verdade e mentira

São 50 montagens – a mais recente, “Henrique IV”, adaptação do texto de Luigi Pirandello –  que desenham a arquitetura cênica e a dramaturgia imagística do diretor mineiro Gabriel Villela. Se é da sua nativa cidade de Carmo do Rio Claro que retira os fundamentos para sua artesania teatral, é dos picadeiros mambembes e de ritos profanos ou religiosos que formaliza sua estética em torno de um feudo de memórias para transpor as máscaras de dramas e tragédias que encobrem conflitos humanos. Mais uma vez, Villela vai em busca do desvendamento do que está por trás dos rostos maquilados dos palhaços para reencontrar, no reinado pirandeliano, a dualidade das verdades e a farsa das mentiras da representação. “Henrique IV” não é apenas registro numérico na carreira do diretor, mas consolidação de embate visual que subverte o clássico para atingir sua alma expressiva. Pirandello, como antes Ibsen, Shakespeare, Strindberg, Camus ou Nelson Rodrigues, permite que palavra e imagem se mantenham indissociáveis nas suas integridades em espaço cênico meticulosamente delimitado pelo encenador, e no qual dissonâncias provocativas se ajustam a fantasias formais. O amplo palco do Teatro Antunes Filho do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, está ambientado por J.C Serroni como picadeiro de circo envolvido por atmosfera felliniana em sonoridades musicais e movimentos de ciranda inspirados no filme “Oito e Meio”. O figurino clownesco tipifica para além da caracterização, a mascarada reveladora das aparências. A ilusão, que o visual alegórico-poético imprime à montagem, confirma a cenografia da palavra como linguagem e marca de Gabriel Villela. Os monólogos em que se adensam e projetam a contundência da palavra, e que na dramaturgia de  Pirandello são dúvida e reflexão, encontram na frontalidade e refinamento da atuação de Chico Carvalho, a inteireza interpretativa do personagem Henrique IV. Em “Estado de Sítio”, espetáculo anterior de Gabriel Villela (2019), Chico Carvalho, em participação avassaladora, projetava como o Nada, o niilismo de “um cético de tudo”. É um ator de inteligência cênica e admirável domínio técnico.

Chico Carvalho: requinte na farsa da aparência  

Na década de 1990, geração de jovens encenadores ganhava predominância com gramática própria e sintaxe pessoal. Entre eles, Gabriel Villela que já sintonizava sua trajetória teatral de contornos regionais e mística popular às pulsações cênicas contemporâneas. Mas foi com sua inventiva adaptação de “Romeu e Julieta” (1992), que se revelaria nacionalmente. Ao redimensionar o teatro de rua ( à época, o grupo mineiro Galpão, produtor da montagem, se dedicava ao gênero), numa velha caminhonete como cenário, transmitia com genuína comunicabilidade a força trágica do casal shakespeariano. Lá estavam os bufões e palhaços de circo ao ar livre, as mesmas caras pintadas e nariz postiço dos clássicos de hoje.  Na sequência, o encenador risca a linha que determinaria seu universo autoral. Seja em “Guerra Santa”, “Ventania”, “Rua da Amargura” ou “Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu”, o rigor construtivo e o ilusionismo onírico dos ritos religiosos e circo-teatro da tradição mineira, se misturam à poética de “Vida É Sonho”, ao barroquismo emprestado a “Calígula” e a dramatização a “Macbeth”.  Nelson Rodrigues, no entanto, foi menos sensível aos cânones gabrielianos. Em “A Falecida” (1994) procura signos da cultura carioca (futebol,  samba e bilhar) para criar um espaço de jogo de emoções suburbanas, perdendo a mão nesta partida. No “Boca de Ouro” (2018) o bicheiro de Madureira sucumbia nas imagens carnavalizadas de um Drácula periférico e deus asteca fora de lugar