domingo, 28 de março de 2021

Estreado em 2011, o monólogo “A Lua vem da Ásia”, adaptação do romance de Campos de Carvalho pelo ator Chico Diaz ganha mais uma emissão online - link - No atual formato digital, segundo Diaz, pode ser visto “numa versão mais leve, mais bem humorada”. Leia a crítica publicada há dez anos do espetáculo original para na sua montagem no palco. 

Chico Diaz no espaço ilógico de Campos de Carvalho 




Onde se refugiou a lógica? Os mestres de sua disseminação foram assassinados e os seus acólitos estão presos em manicômios, servindo de cobaias a uma racionalidade que não consegue entender o mundo. Neste espaço ilógico, Campos de Carvalho propõe, em “A Lua vem da Ásia”, a apreensão da vida no refluxo da tentativa de abarcá-la. São áreas desconhecidas, percorridas com palavras que mapeiam geografias humanas e razões imutáveis, ironizam desígnios e falseiam certezas. O fluxo verbal se conduz por espaços que se desmentem continuamente, levam a pontos de incertezas. A ficção de Campos Carvalho, menos como experimentação de linguagem literária, é mais um modo de ficcionar um universo atropelado por inconclusões, visão um tanto niilista da existência, em que o humor crítico se infiltra por cada um dos desvãos da narrativa. Escrito em 1956, o livro, como o restante da obra do autor, continua provocador em sua iconoclastia e intrigante em seus atalhos verbais. Aderbal Freire-Filho foi quem trouxe para o teatro o universo de Campos de Carvalho, com “O Púcaro Búlgaro”, encenação em que fazia do literário a própria razão de ser da cena. Ao apostar na adequação do que é essencialmente romanesco para o que pode vir a ser profusamente teatral, Aderbal traduziu algo até então lido para a fisicalidade do palco. Em “A Lua vem da Ásia”, em temporada no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, o diretor Moacir Chaves não repetiu a abordagem de Aderbal, ainda que no programa do espetáculo, seu nome apareça como supervisor de dramaturgia. Chaves destaca da adaptação de Chico Diaz (há um “prólogo” e um “epílogo” que encorpam a inteireza do romance) uma certa “dramaticidade” para as diversas nuances estilísticas de uma oralidade obsessiva como caudal desviante das possibilidades de percepção. O diretor empresta ao monólogo caráter múltiplo como formas de capturar os diversos veios expressivos pelos quais são conduzidos os leitores-espectadores da jornada de alguém percorrendo dúvidas e intencionalidades. A cenografia de Fernando Mello da Costa funciona como acessório a este visão multiplicada que o romance propõe e o diretor acompanha. O quadrado vazado, quarto-manicômio, servido por objetos que chegam como se fossem transportados por monta-cargas ou se distribuem como peças espalhadas por delírio organizatório, se transforma em sugestão de lona circense, que acompanha a mudança de espaço e das divagações envolta pela maior evasão da interioridade do personagem. Chico Diaz se entrega a esse mergulho no labiríntico percurso de quem (des)escreve o mundo como embate de espírito globalizadamente humanizado. Com força oscilante entre o vigor do peito aberto e o patético de um vagabundo que evoca Beckett, o ator transmite com ironia e sensibilidade o “sentimento do mundo” como a poesia cáustica de quem o moldou. Uma interpretação com plena adesão e identidade ao material “dramático” e domínio da sua medida e extensão. Uma atuação límpida e inteligente.