terça-feira, 16 de maio de 2023

“Longa Jornada Noite Adentro”

Ana Lúcia Torres e Luciano Chirolli, direção de Sérgio Módena (2023)

A culpa, até mais do que o amor, é o que une a família Tyrone.  Cada um deles atribui ao outro as suas fraquezas, vivendo da imagem das recriminações que este espelho de sentimentos reflete sobre todos.  Não há mais lugar onde possam viver juntos, mas estão condenados a compartilhar a intolerável sujeição afetiva que os reúne por laços de dependência mútua.  Ao longo do dia, que começa num café da manhã cheio de suspeitas, se prolonga num almoço de anunciadas dores, se estende por uma tarde de histórias irreparáveis, que adquire solitárias certezas no jantar e se acomoda no início da madrugada na fantasmagórica desistência de viver. Os Tyrone, desde modo, empreendem  sua caminhada para a noite.
Com a ação concentrada num único dia, “Longa Jornada Noite Adentro”, peça póstuma de Eugene O’Neill – só permitiu a encenação após a sua morte -, o autor faz um tributo aos seus antepassados, escrevendo sobre a própria família com “profunda piedade, compreensão e perdão”.  Os sentimentos de O’Neill em relação aos seus não seriam os mesmos que os dos personagens que criou  puderam experimentar entre si.  O passado prende cada um deles aos demais, numa rede de conflitos em que se atribuem responsabilidades pela infelicidade de suas vidas, mas demonstram que esta trágica unidade afetiva se articula através de insustentável amor. O jogo de culpabilidade mantém a família em permanente angústia por tentar compreender o verdadeiro papel individual dentro dela.  O sofrimento, algumas vezes, parece barulhenta história melodramática, na qual todos gritam e se exaltam, bebem e se drogam, são ferinos e maldosos, choram e se desesperam, mas encontram o seu mais profundo amor nas pausas entre os embates emocionais e nos silêncios da repulsa.

Sérgio Britto e Cleyde Yáconis, direção de Naum Alves de Souza (2002)

Essa longa jornada de um dia até escura noite se fundamenta no realismo psicológico e a trajetória dos personagens se identifica, profundamente, com esse verismo narrativo que traça os contornos dos personagens com força dramática, impondo-se pela refração poética ao mero naturalismo. A construção da peça obedece a disciplinada e rigorosa evolução, em que o tempo real se confunde com o psicológico, de tal maneira que a passagem das horas acompanha a imobilidade daquelas vidas que estagnaram no passado, de onde retiram a seiva para continuar, mesmo em litígio e imobilizados pelas culpas divididas. “A vida nos fez assim”, diz a frágil Mary, enquanto o atormentado Jamie constata que “tudo é como está”.  Nesta empreitada existencial, envolvida pela neblina do que já passou, afogada no amor estrangulado pelos ressentimentos, Eugene O’Neill descreveu nesta pequena joia do realismo, a experiência de existências concentrada em dilacerantes 24 horas.