quinta-feira, 24 de maio de 2012

19ª Semana da temporada 2012

Três Gêneros, Três Autores

Crítica/ Auto da Compadecida
Esperteza e malícia como exercício da moralidade
Quando foi apresentada no Rio em 1957, dois anos depois de ter sido escrita pelo paraibano Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida recebeu críticas entusiásticas mais do que merecidas. O romanceiro popular nordestino e o entremez ibérico se combinam para que a farsa armada por João Grilo, herói esperto, aparentado de Sganarelo e de Pantaleone, subverta a ordenação social, utilizando-se de meios ardilosos cultivados pela necessidade de sobreviver. A trama, divertida, extremamente bem urdida, fincada nas suas origens eruditas, transforma-se em farsa popular, de construção dramatúrgica milimetricamente desenvolvida. Nesse ”exercício da moralidade o esperto João Grilo e seu parceiro medroso Chico conduzem com malícia e oportunismos as artimanhas contra os poderosos servindo-se de expedientes  para assegurar o pão de todo dia. E os meios para tal são tramóias que inventam enterros de cachorros embalados por ladainhas em latim ou animais que descomem dinheiro. Julgado por tribunal celeste, no qual a promotoria é representada pelo Diabo, Jesus o árbitro, e Nossa Senhora, a Compadecida, a generosa interventora, ganha o beneplácito de reviver.      Sidnei Cruz não desmembrou ou fracionou o texto para condensá-lo ou torná-lo mais ágil. Afinal, as peripécias de João Grilo, neste e em outro mundo, são muitas e levam a montagem de duração mais estendida do que a hora e meia da média consumista do teatro atual. A direção toma conta da farsa acionando os mecanismos que lhe são próprios, deixando-se levar pela renovada e contínua ação, que não sofre nenhuma quebra. Um ardil  sucede a outro, em corrida impulsionada por diálogos cômicos, que Cruz administra com precisa carpintaria. O cenário de José Dias com estandartes coloridos e bordados com brilhos circundando arquibancadas que lembram picadeiro circense, é apropriado e funcional. Os figurinos de Samuel Abranches são de alto nível de criação e execução, além das máscaras e dos outros adereços que dão contorno às figuras ibero-nordestinas. A iluminação de Aurélio de Simoni adquire relevância na visualidade da montagem. A música de Wagner Campos também se destaca.  O elenco, apesar de em conjunto demonstrar relativa unidade, se desequilibra em algumas atuações. Lucci Ferreira é um Encourado diabólico, mas um palhaço menos à vontade. Janaina Prado e Bruno Ganem, ela a mulher do padeiro bem espevitada, ele um padeiro mais apagado têm contracena com o padre histriônico de Edmundo Lippi, com o maneiroso sacristão Andre Frazzi e com o inconvincente bispo Arnaldo Marques. Samuel de Assis, melhor como Manuel do que como um dos palhaços narradores, e Jacqueline Brandão, a piedosa Compadecida, dividem o palco com Luiz Machado entre a falsa truculência do coronel e a truculência física do cangaceiro, e com Renato Peres, um farsesco Severino do Aracaju. Marcos Pigossi em atuação esforçada fica um tanto aquém do medroso Chicó. Gláucia Rodrigues compõe um franzino João Grilo sem perder a esperteza e alguma malemolência feminina nesta cativante montagem em cartaz no Teatro do Fashion Mall.  


Crítica/ Obsessão
De frente e sem pudores diante de emoções noveleiras
É uma mistura de melodrama, levemente rodriguiano, com folhetim, acentuadamente novelístico, em que duas amigas rompem depois em que a traição toma o lugar definitivo nas suas vidas. No vai e vem da diferença entre as duas, Carla Faour, autora de Obsessão, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prova, uma vez mais, a crescente segurança como dramaturga, em especial ao investir num gênero com o qual confirma afinidades. A trama é bem urdida, segura pelos diálogos rápidos e concisos, distribuída por quadros que se desenrolam em vertiginosa sequência. O travo melodramático dos sentimentos sem filtros, tão ao estilo das rádio e telenovelas, explode na batida das frustrações amorosas e vinganças suburbanas. Não há perda de interesse diante do mútuo ressentimento com que se jogam, uma contra a outra, e em que se misturam emoções baratas. Carla Faour depura os meios da sua escrita, recorrendo ao melodrama mas sem subjulgá-lo a olhares de homenagem e de revisão. A forma é reproduzida segundo as técnicas melodramáticas, e deste modo supera a origem e ganha autonomia como peça. A direção de Henrique Tavares é frenética, como exige o material dramatúrgico, com movimentação intensa como as expansivas emoções retratadas. Com a cenografia minimalista de dominante vermelho, muito bem iluminada por Aurélio de Simoni, e com detalhes retirados de lembranças cafonas (o pente que ajeita o cabelo glostorizado é o mais divertido deles), Tavares sustenta essa maratona obsessiva com inventividade. O figurino de Clara Rocha é feliz em seu cromatismo kistch, entre o vermelho e suas derivações de gosto duvidoso.    Carla Faour, que começa um tanto fria, hesitante em segurar a personagem, ao longo da encenação se solta, acompanhando com esfuziante calor a absurda ascensão das loucas atitudes de Marina. Ana Baird, mais estável na sua interpretação, leva a fogosa Lívia aos extremos de reações destemperadas, com igual vibração da personagem. Antonio Fragoso, com maior ênfase na composição física, e Celso Taddei, com menor experiência, completam o elenco da sólida concepção de Henrique Tavares.   


Crítica/ Quebra-Ossos
Como dizer bem aquilo que se quer dizer
Quebra-Ossos, a modesta e despojada montagem em cartaz na Sala Rogério Cardoso, é surpreendente pela discrição e despretensão como se oferece à platéia. A diminuta sala da Laura Alvim que a abriga já é indício de que a medida da encenação não é a de se expandir para além de enquadramento gestado a partir do que o texto propõe e das características e ambições do trio de atores. O invólucro dentro do qual se acondiciona essa pequena amostra de teatro revigorado, sem firulas que o esconde em modismos ou desculpas para dificuldades de produção, leva a constatação de que é possível fazer teatro, considerando as suas dimensões, avaliando suas potencialidades, mensurando o alcance de seus passos. Tudo neste Quebra-Ossos, a começar pelo excelente texto de Julia Spadaccini, pela direção plenamente sintonizada com a dramaturgia e pelo elenco afinadíssimo, funciona sem ruídos e dentro de padrões auto-impostos. Spadaccini manipula, multiplicando, três personagens que vivem situações nas quais mudam de posição e personalidade, num jogo de trocas bem arquitetado e com alta voltagem de envolvência. O texto é inteligente, arejado, sem o compromisso de ter que dizer alguma coisa, mas de dizer bem aquilo que quer dizer, e tão somente isso. Essa aura de franqueza e sinceridade da autora se transmite ao diretor Alexandre Mello que, com igual simplicidade,  oferece ainda mais vitalidade ao texto e encontra soluções cênicas para a inteligente tradução as pulsações rítmicas do entrecho. A mão hábil do diretor não deixa que se interrompa a fluidez narrativa, aproveitando-se das surpresas renovadas que a engenhosa  trama de Julia Spadaccini propõe a cada cena. A parte técnica – cenografia, iluminação, figurino, trilha – se conjuga em harmônica unidade que segue a concepção descompromissada do quadro geral. Os atores – Rodrigo Turazzi, Patrícia Elizardo e Cirillo Luna -  transmitem o humor alegre e a vibração que emana da maneira solta com que transmitem a variação de personalidade das figuras que saem, como de uma caixa de mágica, umas das outras. Cirrilo Luna e Patrícia Elizardo têm desempenhos de prazerosa comunicabilidade, e Rodrigo Turazzi se revela talento bem mais do que promissor.   

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terça-feira, 15 de maio de 2012

18ª Semana da Temporada 2012


Negros no Centro da Cena

Crítica/ Negra Felicidade
De volta para documentar o passado, fixando o olhar no presente 
Moacir Chaves, diretor de Negra Felicidade, em cartaz no Teatro Serrrador, constrói provocante dramaturgia cênica para levar ao palco documento histórico do século 19, tornando-o material dramático capaz de se sustentar como narrativa. Não é fácil, muito menos simples, fazer esse transporte da frigidez jurídica de um processo, vazado em terminologia própria e com a                 distância de quase dois séculos, para a linguagem teatral que a torne factível como cena e da qual se extraia a indignação provocada pelo divisionismo, preconceito e violência social. É posto para leitura dramática o processo de 1870 da escrava Felicidade, que pleiteia a liberdade, que lhe é concedida de maneira transversa, já que a sentença a obriga a trabalhar, ao lado da mãe, por mais três anos para o mesmo senhor contra o qual foi à justiça. O absurdo do veredicto fica exposto, ressaltado pela descrição dos meandros da legislação que, pela forma como a justiça é distribuída, como acusação ou defesa, revelando bem mais do que o sistema político-social, escravocrata e democrático atual, pretenderiam que o fosse. Talvez por essa razão, a dramaturgia de Chaves amplie o espectro do documento, introduzindo, como quebras narrativas, o extraordinário Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do padre Antônio Vieira, trecho retirado de peça de Tchecov e relatório numérico sobre a escravatura. A estrutura narrativa, fria, expositiva, reveladora por si mesma, candente nas entrelinhas, explosiva na indignação, é a própria encenação e daquilo que se alimenta para se fazer teatro, sem o populismo da solidariedade de intenções dirigidas e o protesto gerado pelo politicamente correto. A força do que é dito, nos documentos e na sua transfiguração cênica, está no modo como se volta ao passado para fixar o olhar no presente, na busca de formas não dramáticas para impô-las como tal. A aridez linguística da documentação, em alguns momentos, pode ressaltar a dificuldade de um ator em corporificá-la como interpretação, o que acontece quando reduzida à mera explicitação da palavra, tornando a atuação redundante. Mesmo que a direção intente manter a dinâmica em constante movimentação, estilo (humor, leitura branca, ação subjetiva, emoção, racionalidade) e construção de uma teatralidade a serviço da narrativa. De mais de uma dezena de atores da companhia Alfândega 88, a maioria se mostra integrada ao espírito da montagem, com destaque para a inteligência interpretativa de Elisa Pinheiro, a presença do humor de Peter Boss, a emoção genuína de Edson Cardoso, e para as múltiplas e precisas intervenções de Adriana Seiffert, Mariana Guimarães, Fernando Lopes Lima, Renata Guida, Leonardo Hinckel, Diego Molina, Andy Gercker, Danielle Martins de Farias, Pâmela Coto e Rita Fisher. A sutil solução cenográfica de Fernando Mello da Costa e a música de Tato Taborda complementam essa montagem, aparentemente de recepção menos fácil, mas suficientemente envolvente para trazer o espectador aos porões da intolerância, conduzindo-o por trilhas teatrais que iluminam o esquecido e para o situar naquilo que não quer lembrar.                       


Crítica/ Namíbia, Não!

Recusa de regressar a uma mentira histórica
O texto de Aldri Anunciação, em cartaz no Teatro Glauce Rocha, trata do preconceito, por quem o sofre e de dentro de quem o camufla. Escrito com humor, que se utiliza das relações que a sociedade brasileira mantém com o negro, desde a época escravocrata até as suas derivações hoje, a narrativa se situa em 2016, quando decreto governamental obriga cidadãos de “melanina acentuada” a voltar para a África. A desculpa é a de corrigir “erro histórico” e devolver os descendentes de escravos às suas origens, repondo, deste modo, a dívida social, rifando-os. Esse ponto de partida da trama de Anunciação é tanto mais provocativa quanto põe frente a frente, dois personagens negros socialmente bem situados que se vêem confrontados com a interrupção de suas vidas no país de nascimento, cidadania, identidade e cultura. Como não podem ser capturados dentro de suas casas, afinal, preceito jurídico que deve ser respeitado, proibe invasão de domicílio, serão detidos ao saírem às ruas e exportados para, por exemplo, Namíbia. Mas não, não querem ir para lá, nada há por aquelas terras que os faça lembrar o que são. Aqui é o seu lugar, tão deles quanto de quaisquer outros vindos de onde vierem. É com esta desarrumação identitária que o autor brinca com a platéia sobre o que pensar sobre as questões sociais envolvidas por temas propostos por “leis afirmativas” e em torno da introjeção e acúmulo de intolerância histórica. Se de início, o texto é instigante, o seu desenvolvimento, no entanto, se revela convencional, evidenciando relativa perda de seu domínio pelo autor. Há um excesso nos diálogos, que em certa medida, os fazem repetitivos, não permitindo que a ação avance com maior fluência. O tom verborrágico e a tendência ao discursivo desviam, parcialmente, a condução do humor, deixando que se interponha alguma sisudez, que se mostra fora de lugar, se comparada à idéia original da trama. Lázaro Ramos assina a direção, dando aos atores a prevalência no desenho da montagem. Com cenário de Rodrigo Grota, que sugere pouco a sensação de confinamento, e iluminação de Jorginho de Carvalho, o espetáculo tem em Flávio Bauraqui um ator que confere característica de comediante ao personagem, enquanto Aldri Anunciação tensiona bem mais o seu estudante postulante a um lugar no Instituto Rio Branco.      
   
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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Nomes


Biografias de gente de teatro

Sérgio Britto
Incansável viajante pelos caminhos do palco

 Livros escritos por Sérgio Britto – O Palco dos Outros (Rocco) e O Teatro & Eu – Memórias (Tinta Negra) – biografam as viagens teatrais desta força vibrante do teatro, que viveu e percorreu os movimentos artísticos desde o início da carreira no Teatro do Estudante (Romeu e Julieta), nos anos 40, até  a sua morte, há cinco meses, um ano depois de sua última atuação (Recordar é Viver). Sérgio foi um incansável, alguém que fez do teatro mais do que carreira, mas devoção, cultivada em longa e estreita convivência, como ator, diretor, produtor e espectador. Nesses dois livros é possível capturar um pouco dessa entrega a uma atividade que o roubou da medicina e o levou ao Teatro Brasileiro de Comédia, à criação do Grande Teatro Tupi, à sociedade no Teatro dos Sete e no Teatro dos Quatro, à direção artística nos primeiros anos do Centro Cultural Banco do Brasil e à direção do extinto Teatro Delfin. A curiosidade de Sérgio pelo novo se manteve inalterada até aos seus últimos anos de vida. Era comum encontrá-lo nas estréias, nos festivais de teatro, e perceber a sua sensibilidade para o que surgia e tinha talento. Sérgio é responsável pela vinda ao Brasil do diretor Gerald Thomas para encenar Quatro Vezes Beckett (1985), com elenco inesquecível: Ítalo Rossi, Rubens Corrêa e Sérgio. Voltaria a Beckett, em 2008, em A Última Gravação de Krapp e Ato Sem Palavras I.  “Beckett é uma experiência tão especial que eu não sei se tenho palavras exatas para falar dela. Só posso garantir que foi, talvez, a experiência mais importante de toda a minha carreira. Um crítico matou a charada quando disse que nesse Krapp surgia um Sérgio reinventado pela Isabel (Cavalcanti, a diretora).” Nas frequentes viagens ao exterior, parte delas condensadas em O Palco dos Outros, Sérgio relata a ida ao Festival de Outono de Paris e ao Festival Chiraz, na Pérsia (Irã), em 1974, como integrante do elenco de Autos Sacramentales, levado pela nave louca de Victor Garcia. Revive o fascínio de assistir, em Caracas, A Oréstia, de Ésquilo, com direção de Peter Stein. E nas Memórias conclui: “Para ser ator, é preciso ser uma paixão absoluta; para tentar teatro, é necessário que teatro seja a coisa mais importante da sua vida: se assim não for, desista, teatro não é o seu lugar”.       


Mara Rúbia
Vedete-atriz para além dos brilhos da ribalta

Ísis Baião e Therezinha Marçal, autoras de Mara Rúbia – A Loura Infernal (Aeroplano), traçam retrato da vedete, que do final dos anos 40 até o início da década de 80 se manteve em cena. O livro homenageia uma das estrelas da companhia de Walter Pinto e a atriz de teatro, cinema e televisão, atuante até a sua morte, em 1991, aos 72 anos. O aspecto biográfico prevalece sobre quaisquer outros, já que não há qualquer pretensão de analisar ou de comentar o papel de Mara na vida artística do Rio. Therezinha, filha da vedete-atriz, e Ísis conduzem a narrativa mantendo a cronologia dos fatos de uma vida que viveu o apogeu (Eu Quero É Sassaricar!, 1951) e o declínio (Cupido nas Furnas, 1956) das revistas, e integrou o elenco de produções de Dulcina (A Filha de Iório, 1947), Bibi Ferreira (Escândalos 1950) e Victor Berbara (Promessas, Promessas, 1970). Ainda que acompanhe a existência desta loura infernal de corpo violão, as autoras se permitem criar ficção no primeiro capítulo, quando reconstituem o velório e enterro de Mara num exercício de escrita que inicia com inventividade uma história intensamente vivida. É possível perceber as habilidades de uma mulher de teatro, sem nenhum aprendizado técnico, saída da província e recém separada, com filhos, que se joga na competitiva ribalta da Praça Tiradentes. A presença da exuberante mulher é o que sobressaía de início, mas em seguida surgia, de geração artística espontânea, a atriz, imbatível nos números de platéia, nos quais se exigiam inteligência comunicativa e rapidez no improviso. Essa capacidade, cultivada na prática do palco, que a acompanhou em toda a carreira – fez-se atriz de comédia e de musicais com a mesma intuição da inexperiente jovem que foi a Walter Pinto desejando subir ao palco, sem saber muito bem o que isso, realmente, queria dizer. Aprenderia a manha, rapidamente, se lançando à platéia, segura de saber como cativá-la. “Se aparecia um (espectador) muito saliente, que vem lá com a piada dele, mal você acabou de dar a sua , ah, eu ia pra cima dele. Dava a minha jogada. E se ele insistia de lá e eu sentia que a coisa estava engrossando, eu dizia logo: “Põe o foco no artista ali que tirou o meu cachê de hoje.” Era água na fervura. Mal se jogava a luz, acabava o artista.”        


Márcio Aurélio
Ilusões Cômicas: imagens de subjetividades poéticas

A trajetória do diretor é revista por ele próprio na publicação de Márcio Aurélio – O Que Estava Atrás da Cortina? (Imprensa Oficial). Na infância em Piraju, cidade paulista fronteiriça ao Paraná, faz as primeiras descobertas do teatro, do qual se aproxima, timidamente, quando se transfere para São Paulo, em meio a cursos e empregos para sobrevivência, até a escolha definitiva do palco. Numa sequência que obedece a criação de espetáculo a espetáculo, Márcio descreve a sua apropriação do trabalho de construir a cena, relatando dúvidas, inquietações, e a permanente busca de exercitar as prováveis expressões para experimentar o poético. Já no início da carreira, Aurélio se perguntava: “como diretor começava a perceber que um novo tipo de atuação era possível. Mas como construir o discurso da cena? A tradução da cena? A escrita que visava a outra estética? Não era o caso de montar peça, mas pensar a peça, e como utilizá-la. Confronto de personagens e a reorganização e construção de novo texto que não era para ser vivido, mas demonstrado como embate de ideais e suas contradições.” Sob esta perspectiva, desenvolveu a sua onírica apreensão dos clássicos (A Bilha Quebrada), da dramaturgia de Alcides Nogueira (Pólvora e Poesia), do jogo cênico (A Ilusão Cômica), do amor velado (Agreste), e do amor doentio (Anatomia Frozen). A moldura poética que empresta às suas encenações faz de Márcio Aurélio um diretor que se utiliza de meios quase ascéticos, iluminação bem desenhada, que projetam imagens sombriamente arrebatadoras, como em Agreste e Anatomia Frozen. Criador, há 21 anos, da Companhia Razões Inversas imprimiu metodologia voltada para o ator como agente da constante investigação da cena, proposta como uma subjetividade rascante de estados emocionais. Desde o início, a Companhia Razões Inversas “partiu do pressuposto que o núcleo que forma a base para a construção do espetáculo é um organismo social em transformação. O estabelecimento do diálogo abre a visão da obra. A retórica cênica é construída a partir da inteligência e na qual aparece a sensibilidade, como expressão, ganhando o público com a poesia da cena e a subjetividade poética.


Emilio di Biasi
ppp@WllSkspr.br: Shakespeare como farsa

O título da biografia de Emilio di Biasi, O Tempo e a Vida de Um Aprendiz (Imprensa Oficial), escrita por Erika Riedel, reflete a procura do ator e diretor paulista ao longo de mais de 50 anos de carreira por encontrar o seu papel no palco. Por todas essas décadas, Emilio, tanto como ator quanto como encenador, participou dos movimentos teatrais que desde os anos 60 movimentaram a cena brasileira. O começo foi participando de espetáculos amadores no banco em que trabalhava, até decidir-se pelo teatro, incondicionalmente. Como ator e diretor funda o grupo Decisão, com Antonio Abujamra e Antonio Ghigonetto, sob forte influência brecthiana, que chegava como novidade provocadora e levou o trio a encenações fortemente marcadas pelas teorias do autor alemão (Terror e Miséria do III Reich). Mas não apenas Brecht fazia parte do repertório, também a dramaturgia inglesa (O Inoportuno, de Harold Pinter) e clássicos (Electra) foram encenados pelo Decisão em seus cinco anos de existência. A inquietação de Emilio, ainda na década de 60, o aproxima dos novos autores brasileiros – Antonio Bivar (Cordélia Brasil), José Vicente (Os Convalescentes), Timochenco Wehbi (A Vinda do Messias) que apareceram na época e se firmaram nos dez anos seguintes. Nesta fase, avalia Emilio, “se conhece novos autores que começaram a dar destaque a problemas individuais, apresentados como deformações sociais, ou seja, como consequência de uma deformação social.” Nos 80, a dramaturgia de Bernard-Marie Koltès chama sua atenção, o que o fez traduzir Cais Oeste, do provocante autor francês, e a encenar O Tempo e a Vida de Carlos e Carlos, inspirado em Tempo e a Vida de David Clark, espetáculo de Bob Wilson que assistiu, arrebatado, em 1974, no Teatro Municipal de São Paulo . Em paralelo ao teatro, Emilio co-dirigiu várias novelas de televisão, na Bandeirantes e na Globo, sem nunca deixar o palco. Dos 90 até os 2000, a sua preferência pela dramaturgia européia se distribuiu por montagens tão diversas quanto a divertida ppp@WllSkspr.br, que dirigiu para os Parlapatões, Cinema Éden, texto de Marguerite Duras com interpretação de Cleyde Yaconis, e Um Passeio no Parque, que deu a ele o prazer de da maturidade interpretativa. “No teatro, você junta uma galera de boa vontade e a coisa vai. Todo mundo topa por uma porcentagem  e o espetáculo acontece. E é com esse estado de espírito  que você vai para o trabalho.”   

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sexta-feira, 4 de maio de 2012

17ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Cowboy
Dupla face da onipresença materna
Daniela Pereira de Carvalho, autora de Cowboy, em cartaz no Oi Futuro do Flamengo, tem trajetória consistente na dramaturgia carioca. Com praticamente todos os seus textos encenados, a sua carreira se identifica com sua geração, aquela que transita pelos anos 80, os formadores de universo dramático marcado pela cultura pop e por referências literárias de arco extenso, que abarcam dos quadrinhos à geração beat. Daniela é uma demonstração dessas influências, perpassadas por relativa nostalgia desses anos de construtivos. Nesses dois monólogos – um filho que recompõe sua vida com sua mãe através de delírio, e uma mãe que penetra no quarto do filho morto, tentando reconstruir a sua própria vida – Daniela se volta para o passado juvenil, mesmo tratando de suas conseqüências no plano adulto. O filho, que sob imagens criadas ao impulso de drogas e no limiar do estado de inconsciência, traça desenho de si mesmo a partir da onipresença materna, figura absoluta na sua desagregação existencial. A mãe revê a convivência filial, manipulando lembranças na tentativa de se refazer através das memórias. Não há dúvida do crescente domínio da autora sobre sua dramaturgia, mas desta vez Daniela se utiliza do monólogo, gênero difícil por seus limites expressivos, e estabelece clima de estranhamento que obscurece a fluência narrativa. As imagens que cria, como a obsessiva insistência sobre visões das duas vacas com nomes ou a situação   implausível do afastamento da mãe de sua própria festa. Juntos, os monólogos apenas vagamente estabelecem interface temporal e dramática. O diretor Henrique Tavares parece ter percebido a disparidade, tanto que, praticamente, dissocia um do outro com longo intervalo entre eles. A princípio se imagina que a partilha em dois atos esteja ligada à mudança dos cenários, assinados por Aurora dos Campos. Afinal, são duas ambientações bastantes distintas, em que a da segunda parte está sobrecarregada de elementos (brinquedos, bichos de pelúcia) que exigem montagem demorada, mas o que se verifica é que a divisão evidencia a estranheza de cada uma das partes. O que se consegue no primeiro monólogo, com alto custo de recepção da platéia, se esboroa no segundo, pela ausência de qualquer atmosfera mais identificável e pela rapidez na duração. Saulo Rodrigues intercala sua interpretação entre a juvenalização e o humor levemente absurdo. Susana Ribeiro, com a difícil tarefa de dar alguma veracidade à volatilidade da personagem, sofre com a estranha figura desenhada pelo desajeitado figurino.        


Crítica/ Rebeldes Sobre a Raiva
Arena beligerante de ressentimentos e parentescos
O texto da israelense Edna Mazya, em cartaz no Espaço Sesc, se passa em três tempos (no presente, quando a peça foi escrita, 1997; no passado, 1967, e no painel que apóia a narrativa, 1945), traçando através da rebeldia e raiva de uma mulher, conflitos, os seus e os de uma região, na busca de independência identitária. Ao fundo, Israel e a Palestina, de frente, ódio e amor, misturados numa metáfora de relações políticas e individuais que se confundem em arenas perigosamente beligerantes, em áreas de ressentimentos e parentescos incompreendidos. A interpenetração dessas duas  esferas é proposta de maneira até certo ponto convencional. Administrando os tempos dramáticos com dosagem bem medida, Mazya percorre o espectro narrativo com gotas de humor, respingos de historicidade e pitadas de melodrama, compondo quadro envolvente. Sem a leitura do texto original e analisando somente a adaptação do diretor Rodrigo Nogueira, Rebeldes parece seguir as regras de playwriting, o que o sustenta com segurança. A montagem de Rodrigo reflete a compreensão do universo retratado, detalhando os momentos políticos e existenciais com acuidade e construindo o espaço temporal com distintas atmosferas. Para tanto, a direção musical de Rodrigo Marçal é um elemento importante, assim como o cenário de Hilton Berredo, que converte túmulos em vários ambientes, num geometrismo funcional. O problema que o espetáculo não resolve a contento se prende ao elenco. Dentro de suas possibilidades, tipos físicos, técnica e ligação com a temática, os 12 atores podem até ser considerados integrados à proposta. A montagem, no entanto, evidencia o desajuste de geração de atores a gênero teatral que não é tão próximo, seja por formação, estilo ou vinculação cultural. Não por acaso, Rogério Fróes se mostra hierática e subjetivamente memorialístico, em contraponto à rigidez nervosamente intensa de Marina Vianna. E Joana Lerner demostre facilidade em emprestar vivacidade à juventude de Alma, e João Velho não consiga fugir ao estereótipo no tenente Williams.    

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