Crítica/ Auto da
Compadecida
Esperteza e malícia como exercício da moralidade |
Quando foi apresentada no Rio em 1957, dois anos
depois de ter sido escrita pelo paraibano Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida recebeu críticas entusiásticas mais do que
merecidas. O romanceiro popular nordestino e o entremez ibérico se combinam
para que a farsa armada por João Grilo, herói
esperto, aparentado de Sganarelo e de Pantaleone, subverta a ordenação
social, utilizando-se de meios ardilosos cultivados pela necessidade de
sobreviver. A trama, divertida, extremamente bem urdida, fincada nas suas
origens eruditas, transforma-se em
farsa popular, de construção dramatúrgica milimetricamente desenvolvida. Nesse
”exercício da moralidade o esperto João Grilo e seu parceiro medroso Chico
conduzem com malícia e oportunismos as artimanhas contra os poderosos servindo-se
de expedientes para assegurar o
pão de todo dia. E os meios para tal são tramóias que inventam enterros de
cachorros embalados por ladainhas em latim ou animais que descomem dinheiro. Julgado por tribunal celeste, no qual a
promotoria é representada pelo Diabo, Jesus o árbitro, e Nossa Senhora, a
Compadecida, a generosa interventora, ganha o beneplácito de reviver. Sidnei Cruz não desmembrou ou
fracionou o texto para condensá-lo ou torná-lo mais ágil. Afinal, as peripécias
de João Grilo, neste e em outro mundo, são muitas e levam a montagem de duração
mais estendida do que a hora e meia da média consumista do teatro atual. A
direção toma conta da farsa acionando os mecanismos que lhe são próprios,
deixando-se levar pela renovada e contínua ação, que não sofre nenhuma quebra. Um
ardil sucede a outro, em corrida
impulsionada por diálogos cômicos, que Cruz administra com precisa carpintaria.
O cenário de José Dias com estandartes coloridos e bordados com brilhos
circundando arquibancadas que lembram picadeiro circense, é apropriado e
funcional. Os figurinos de Samuel Abranches são de alto nível de criação e
execução, além das máscaras e dos outros adereços que dão contorno às figuras
ibero-nordestinas. A iluminação de Aurélio de Simoni adquire relevância na
visualidade da montagem. A música de Wagner Campos também se destaca. O elenco, apesar de em conjunto
demonstrar relativa unidade, se
desequilibra em algumas atuações. Lucci Ferreira é um Encourado diabólico, mas
um palhaço menos à vontade. Janaina Prado e Bruno Ganem, ela a mulher do
padeiro bem espevitada, ele um padeiro mais apagado têm contracena com o padre
histriônico de Edmundo Lippi, com o maneiroso sacristão Andre Frazzi e com o
inconvincente bispo Arnaldo Marques. Samuel de Assis, melhor como Manuel do que
como um dos palhaços narradores, e Jacqueline Brandão, a piedosa Compadecida,
dividem o palco com Luiz Machado entre a falsa truculência do coronel e a
truculência física do cangaceiro, e com Renato Peres, um farsesco Severino do
Aracaju. Marcos Pigossi em atuação esforçada fica um tanto aquém do medroso
Chicó. Gláucia Rodrigues compõe um franzino João Grilo sem perder a esperteza e
alguma malemolência feminina nesta cativante montagem em cartaz no Teatro do
Fashion Mall.
Crítica/ Obsessão
De frente e sem pudores diante de emoções noveleiras |
É uma mistura de melodrama, levemente rodriguiano,
com folhetim, acentuadamente novelístico, em que duas amigas rompem depois em
que a traição toma o lugar definitivo nas suas vidas. No vai e vem da diferença
entre as duas, Carla Faour, autora de Obsessão,
em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prova, uma vez mais, a crescente segurança
como dramaturga, em especial ao investir num gênero com o qual confirma
afinidades. A trama é bem urdida, segura pelos diálogos rápidos e concisos,
distribuída por quadros que se desenrolam em vertiginosa sequência. O travo
melodramático dos sentimentos sem filtros, tão ao estilo das rádio e
telenovelas, explode na batida das frustrações amorosas e vinganças suburbanas.
Não há perda de interesse diante do mútuo ressentimento com que se jogam, uma
contra a outra, e em que se misturam emoções baratas. Carla Faour depura os meios
da sua escrita, recorrendo ao melodrama mas sem subjulgá-lo a olhares de homenagem e de revisão. A forma é reproduzida
segundo as técnicas melodramáticas, e deste modo supera a origem e ganha
autonomia como peça. A direção de Henrique Tavares é frenética, como exige o
material dramatúrgico, com movimentação intensa como as expansivas emoções
retratadas. Com a cenografia minimalista de dominante vermelho, muito bem
iluminada por Aurélio de Simoni, e com detalhes retirados de lembranças cafonas
(o pente que ajeita o cabelo glostorizado
é o mais divertido deles), Tavares sustenta essa maratona obsessiva com inventividade. O figurino de Clara Rocha é feliz em
seu cromatismo kistch, entre o
vermelho e suas derivações de gosto duvidoso. Carla Faour, que começa um tanto fria, hesitante em segurar a personagem,
ao longo da encenação se solta, acompanhando com esfuziante calor a absurda ascensão
das loucas atitudes de Marina. Ana Baird, mais estável na sua interpretação,
leva a fogosa Lívia aos extremos de reações destemperadas, com igual vibração da
personagem. Antonio Fragoso, com maior ênfase na composição física, e Celso
Taddei, com menor experiência, completam o elenco da sólida concepção de
Henrique Tavares.
Crítica/ Quebra-Ossos
Como dizer bem aquilo que se quer dizer |
Quebra-Ossos, a modesta e despojada montagem em
cartaz na Sala Rogério Cardoso, é surpreendente pela discrição e despretensão
como se oferece à platéia. A diminuta sala da Laura Alvim que a abriga já é
indício de que a medida da encenação não é a de se expandir para além de
enquadramento gestado a partir do que o texto propõe e das características e
ambições do trio de atores. O invólucro dentro do qual se acondiciona essa
pequena amostra de teatro revigorado, sem firulas que o esconde em modismos ou
desculpas para dificuldades de produção, leva a constatação de que é possível
fazer teatro, considerando as suas dimensões, avaliando suas potencialidades,
mensurando o alcance de seus passos. Tudo neste Quebra-Ossos, a começar pelo excelente texto de Julia Spadaccini, pela
direção plenamente sintonizada com a dramaturgia e pelo elenco afinadíssimo,
funciona sem ruídos e dentro de padrões auto-impostos. Spadaccini manipula,
multiplicando, três personagens que vivem situações nas quais mudam de posição
e personalidade, num jogo de trocas bem arquitetado e com alta voltagem de
envolvência. O texto é inteligente, arejado, sem o compromisso de ter que dizer
alguma coisa, mas de dizer bem aquilo que quer dizer, e tão somente isso. Essa
aura de franqueza e sinceridade da autora se transmite ao
diretor Alexandre Mello que, com igual simplicidade,
oferece ainda mais vitalidade
ao texto e encontra soluções cênicas para a inteligente tradução as pulsações rítmicas
do entrecho. A mão hábil do diretor não deixa que se interrompa a fluidez narrativa,
aproveitando-se das surpresas
renovadas que a engenhosa trama de
Julia Spadaccini propõe a cada cena. A parte técnica – cenografia, iluminação,
figurino, trilha – se conjuga em harmônica unidade que segue a concepção descompromissada do quadro geral. Os
atores – Rodrigo Turazzi, Patrícia Elizardo e Cirillo Luna - transmitem o humor alegre e a vibração
que emana da maneira solta com que transmitem a variação de personalidade das
figuras que saem, como de uma caixa de mágica, umas das outras. Cirrilo Luna e
Patrícia Elizardo têm desempenhos de prazerosa comunicabilidade, e Rodrigo
Turazzi se revela talento bem mais do que promissor.
macksenr@gmail.com