sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Temporada 2019


Autor de “Tebas Land “(Teatro Sesi) e de “A ira de Narciso”  (Teatro Poeirinha), o uruguaio Sergio Blanco explora nesses dois textos o que marca a sua dramaturgia: mitos clássicos em contracena realista.

Crítica/ “Tebas Land – A história de um jovem parricida”
Dois planos de um assassinato
Há na construção dramatúrgica de Sergio Blanco um jogo narrativo que pretende interpenetrar estilos e tempos, vozes míticas e realidade psicológica. Em um plano, está autor construindo espetáculo baseado na história de um presidiário que assassinou o pai. Em outro, ambos se corporificam nos personagens, em mútua envolvência emocional e nas incertezas sobre as razões do ato violento. A dupla procura circularidade capaz de trazer o que se propõe referencial (parricídio, formas mitológicas, científicas e literárias) à ação cênica (trama dramática). Longe de ser  embate de contrários, a aproximação caracteriza o que cada um assinala como descoberta individual. Inserção de citações, excessivas e pretensiosas, apoiam imagens (literárias e visuais) que buscam impacto, mas sem maior contundência. A dinâmica dramática, de contornos veristas, concentra no confinamento da cela a sustentação realista da ação física. Victor Garcia Peralta se mostra mais à vontade no segmento realista. Com cenografia dualista (espaço lateral e cela)  de José Baltazar e interpretações divisionistas do elenco (naturalistas de um lado, distanciada de outro), o diretor investe com mais facilidade nas cenas em que autor e prisioneiro constroem seus laços dúbios. A investida em aproximar ator da plateia e de expandir, através de projeções, a didática da narrativa, não encontra ressonância no artificialismo da representação desses movimentos. Os atores - Otto Jr. e Robson Torini ­– ficam neste fogo cruzado, com diferentes cargas de artilharia, em desvios do alvo. Otto Jr. assume a função de narrar e comentar, prejudicado pela espontaneidade expositiva. Robson Torini realiza melhor a passagem na composição do prisioneiro.              
  
Crítica/ “A ira de Narciso”
Arqueologia contemporânea de um mito
Neste texto, Sergio Blanco mantém-se fiel à sua dramaturgia, revisando apenas a contextura formal. O intelectual uruguaio, que vive na França, é convidado para conferência na Eslovênia, hospedando em quarto de hotel, onde detecta manchas de sangue e encontra parceiro para sexo ocasional. Os desdobramentos dessa estadia, ela mesma um exercício de percepção de identidades, reflete, em cada ação, as possibilidades de ser outros. “Je est un autre”, numa citação de Rimbaud.  O ator assume similaridade com o autor para penetrar no personagem em cena, que também é o ator e o autor, para representar relato, que nega ser monólogo, solo ou solilóquio. Confuso, talvez. Ambicioso, sem dúvida.  Vivencial, certamente. São planos narrativos que se interpõem como palavra corrente, seja na conferência, na trama policialesca no hotel, e nos processos criativos. Todos convergem, em dissonâncias verbais, para evocação do mito, que se misturam a comentários políticos e acadêmicos, a sexo e arqueologia, numa vertigem de alusões a filósofos (Deleuze e Heidegger), produtos (Coca Cola) e busca da alteridade. A diretora Yara de Novaes acondiciona em estrutura performática as diversas vozes contidas na torrente da locução. Não se procura o dramático, que se infiltra apenas naquilo que se configura como narrativa temporal. Yara confronta o texto na projeção de sua inteireza, levando o ator a descarnar as palavras, evitando atribuir-lhes intenções. O intérprete é levado a aderir, frontalmente, ao que diz, com gestos contidos, nudez exibida, vocalização fria, à procura de alcançar a abrangência de tantas indicações. A presença, silenciosa e fugidia de um misterioso duplo (Renato Krueger), revela-se pouco mais do que contra-rega atuante. O cenário de André Cortez, que distribui no espaço cênico caixas de som, que abrigam algumas miniaturas, contradiz com esse minimalismo, a nada detalhista concepção da montagem. Gilberto Gawronski  assume, com a força do empenho e a destreza da manipulação vocal, a pluralidade dos significados da palavra em Sergio Blanco.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “As crianças"
No jogo nada infantil de finitudes
O casal de cientistas aposentado, vivendo numa região assolada por acidente nuclear, recebe a visita de uma amiga, ela também cientista, depois de décadas de afastamento. O reencontro, estranho e cheio de lacunas, evolui com a vulnerabilidade, física e emocional, do trio, que evoca o passado de ressentimentos e dubiedades, tateando o futuro com data marcada para o fim. O texto da inglesa Lucy Kirkwood, em cena no Teatro Poeira, segue a linhagem da dramaturgia do seu conterrâneo Harold Pinter, na correspondência com que retira do substrato do realismo, a essência da linguagem. A narrativa descreve situações que podem justificar o comportamento dos personagens, mas que nem sempre os conduzem ao que, aparentemente, é seu desdobramento. A ameaça nuclear ronda a vida de pessoas, indiretamente responsáveis pelo desastre científico. Em contraponto, são elas mesmas vítimas de enganos na sua existência, doentes na escolha terminal do que ainda há para viver. O título, intrigante a princípio, revela-se metáfora do tempo no significado de sua passagem, na reiteração do seu prolongamento e na inexorabilidade da sua finitude, ao menos para nós, humanos. O diretor Rodrigo Portella redimensiona a progressão cênica no espaço abstrato, construído com imagens que sugerem e palavras que predizem. As rubricas são anunciadas, quebrando a ação e quaisquer conotações realistas. A cenografia delimita a área do jogo teatral como um playground recoberto de pedras e de mobiliário básico em que sobressai um cavalinho de balanço. Há na montagem acomodação, de suave perversidade, entre diálogos subtendidos e situações dissonantes, ampliando a circulação desses planos em movimentos instigantes (chupar pirulitos, segurar uma bola de gás) e em ritmo marcado por pausas e silêncios. Portella determina a pulsação dramática no encontro de uma poética da finitude com o tensionamento de conflitos subjetivos. Límpida, sem ênfases (a exceção é o final em crescente arrebatamento), a encenação sincroniza a trilha original de Marcelo H e Frederico com a iluminação de Paulo Cesar Medeiros. A preparação corporal de Marcelo Aquino resulta na recriação de vagos gestos infantis. Texto de ator, no rastro das interpretações no teatro inglês, “As crianças” oferece ao elenco a oportunidade de estabelecer contracena em tríade, sem destaques ou protagonismos. O que prevalece é o conjunto, e de como as peças se movimentam no tabuleiro unificador. E Stella Freitas, Analu Prestes e Mario Borges jogam como grupo coeso, numa frente única de atuações com passes precisos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “O que é que ele tem"

Exercício da maternidade confrontada com a imprevisibilidade 

Com a reestreia de “O que é que ele tem”, no Teatro Maison de France, está
aberta a temporada 2019, apontando para o prosseguimento da epidemia de monólogos na cena carioca. Mais uma vez, um ator (neste caso, a atriz Louise Cardoso), um livro (de Olívia Byington), uma adaptação (de Renata Mizrahi), cenário e direção discretos (de Natália Lana e Fernando Philbert), e produção enxuta compõem o quadro de um gênero que se consolida na razão direta das dificuldades de pensar e fazer teatro no atual momento. A montagem atende a todos os requisitos que condicionam o monólogo, e se apoia na emotividade que o material livresco pode proporcionar. O relato de uma mãe que é confrontada pelo nascimento de um filho com síndrome que provoca graves entraves à sobrevivência e difíceis obstáculos de aceitação na vida social, avança para além da descrição de fatos ou de cronologias. Olívia Byington se descreve, não só no exercício de uma maternidade interferida na sua previsibilidade afetiva, como nos difíceis confrontos com sentimentos, dolorosamente exigidos. Num depoimento, sincero, frontal, corajoso, sempre amoroso, a mãe de 22 anos com um bebê lutando para existir, inicia o percurso de vida e morte para estabelecer laços entre aqueles que sabem, o intuem, que estão entranhados, um ao outro, em continuidade de si mesmos. A encenação, como o livro, não apela para sentimentalismos ou facilidades, mas faz da narração, balanceada por grandes dores e pequenas alegrias, projeção de inescapável determinismo. A direção, com discreta presença, equilibra a escala emocional que o texto propõe em fluxo suave. A cenografia, que se assemelha mais a um décor , acompanha com efeito onírico, a suavidade com que o conjunto é construído. Para além da iluminação filtrada de Vilmar Olos, do figurino cotidiano de Rita Murtinho, da trilha sonora sentimental de Marcelo Alonso Neves, e as projeções cênicas e o eficiente videografismo de Rico e Renato Vilarouca, a direção de movimento de Marcia Rubin confere um sopro de gestos ao que poderia se tornar estático. Lousie Cardoso marca com compasso de delicadeza as batidas fortes do desabafo e com a voz ritmada de uma sina, a trajetória simbiótica de uma relação.