quinta-feira, 4 de abril de 2019

Temporada 2019/ Festival de Curitiba


Pelo 28º ano, o Festival de Curitiba mantém a sua estrutura, senão intocada, pelo menos parcialmente ajustada às transformações da cena brasileira ao longo deste período. Ainda como vitrine e com alguma inflexão nesta formulação, a atual curadoria – do diretor Márcio Abreu e do ator Guilherme Weber - da mostra paranaense aponta para algum desvio de rumo, pelo terceiro ano seguido. Com sintonia na produção do eixo Rio-São Paulo, e apontamentos para Belo Horizonte, distribui-se por espetáculos mais identificados com o mainstream (se é possível falar de tal conceito na atual conjuntura teatral), e outros mais próximos a uma cena de rompimentos. As duas linhas ainda estão em acomodação, mas caminham para as trinta edições com o traço majoritário do desenho original. Apenas levemente ruidoso.
Mulheres em volta do fogão
 “As Comadres¨ - Essa comédia musicada canadense se mostrou deslocada, sob qualquer conceito curatorial, na programação do festival, e não só. O deslocamento é também do tempo dramatúrgico, da fragilidade  da sua estrutura narrativa e da precariedade da imagem feminina que projeta. O fato de ter a supervisão geral de Ariane Mnouchkine, um dos nomes mais importantes na cena internacional do século passado, não poderia fazer supor que assinasse, mesmo que reproduzindo a encenação original, montagem inexpressiva. Nada indicaria que alguém pudesse exumar um texto banal de década de 1960, de um autor obscuro e descartável. A única justificativa de encenar material tão pouco estimulante, está no eventual comercialismo entrevisto por produtor à antiga. Mas o pior está na perspectiva de ir além da sua insignificância. As mulheres que se veem no palco vivem o feminino através de chavões sociais conservadores. Donas de casa sem ambições para além de redecorar o lar, competitivas e desonestas entre elas, preconceituosas com aquelas que consideram “decaídas”, e que têm o aborto como estigma.  preconceituosas com as que se perdem, o aborto como estigma. O melodrama, que ameaça de início, se adensa até o inacreditável final, intercalado por letras que o reforçam e música que o ratifica. Nada poderá se mais anacrônico do que essa exibição de um teatro que aponta para sinais contrários à atualidade, e para códigos cênicos passadistas.
Uma fera ternamente furiosa

“Recital da Onça”
- O desafio de Regina Casé, neste monólogo ao ocupar o palco do Teatro Guaíra, era de se fazer presente e comunicativa para os dois mil espectadores que ocupavam as poltronas da sala. Esse mérito, a atriz conquistou, mas ao custo de dosar, um tanto desmedidamente, o one woman show com leituras de trechos literários. A maior parte das pouco mais de duas horas em que está em cena, explora suas características de humor, para divertir e fazer rir, com pílulas de sabedoria. E assim, integra em descompasso, vivências referidas, citação a filme em que atuou, à “trama” da ida a Harvard para “lecture” de autores brasileiros. A ponte improvisada está estabelecida entre a motivação das leituras e a chegada até lá: o medo da imigração americana, a sedução da plateia para fazer parte das escolhas da conferência. Em Curitiba foram lidos fragmentos de obras de Mario de Andrade, Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Guimaraes Rosa e Clarice Lispector. A personalidade performática de Regina é a chave para abrir as páginas dos livros, cronometradas em 20 minutos de leitura cada um. Nesse retrato personalista, a atriz e apresentadora cultua sua imagem, que se sobrepõe aos tópicos literários. Espera-se encontrar a mesma e conhecida Regina da tv, que, entre pausas, enuncia palavras autorais. Os dois planos, self-show e sarau literário, estão interligados pela conquista, pelo humor, da audiência. Na escalada da “ganhar o espectador”, vale até concurso de samba no pé, no qual recatados curitibanos mostraram suas habilidades. Tanta movimentação e apelo, torna secundárias as características dos textos lidos,  esvaziados de força expressiva.  A exceção honrosa fica por conta de “Meu Tio Iuaretê”, de Guimarães Rosa, em que surge uma intérprete vigorosa, corporal e vocalmente, e liricamente furiosa.
Vestindo os nus
“P.I Panorâmica Insana” - Escritura cênica, como a definiu Bia Lessa, que assina a direção geral, a dramaturgia, ao lado de três outros autores, talvez seja o que melhor sintetize essa coletânea de textos e esquetes, que pretende refletir a perplexidade do momento, a apreensão do agora, o desgaste do diário. O gigantesco palco do Teatro Guaíra, forrado por milhares de peças de roupas, ambienta o veste e despe dos quatro atores - Claudia Abreu, Leandra Leal, Rodolfo Pandolfo e Luiz Henrique Nogueira - que se lançam a maratona de troca de peles, personagens e tipos, numa corrida pela identificação por cpfs, nomes, condição social, existência, atitudes, em cenário devastado pelo caos. Morte, miséria, religiosidade, politica, comportamentos, cotidiano, tantas formas de convívio com as fraturas de mundo, filtradas pela convivência com negações do humano. São cenas ativadas pelo ato de movimentar, como num balé simbólico de troca de vestimentas (papéis, funções, máscaras), frente as toadas das provocações. No enquadramento proposto, há muito mais a intenção de impacto, do que de corte crítico. A inconstância do material, variante do escatológico à convenção do esquete cômico, sob a embalagem de instalação plástica, deixa entrever datação estilística. A cena final, que empacota o espaço, não esconde suas origens e inspiração. Mas é a cena que a antecede -  o esquete de humor, com os atores no centro do palco -, que Rodolfo Pandolfo como o matuto, que conquista o público com verve piadista.
Coro marcando presença

“ Abujamra Presente” - A companhia Fodidos e Privilegiados (1901-2000), criada à imagem e semelhança de seu fundador e diretor geral, Antônio Abujamra (1932-2015), reuniu o elenco original para homenagear o seu mentor. Quase 20 anos depois, e dirigido por João Fonseca,  a cria mais identificada com seu mestre, “Abujamra Presente” é a súmula anárquica, provocativa, politizante das montagens e do irreverente pensamento, das boutades e personalidade do encenador. Os sinais ampliados da linguagem cênica dos seus espetáculos - os duplos, a dubiedade dos gêneros - são retomados com comentários, bem explícitos, sobre o momento político, num carrossel que gira entre a memória e o presente reverberado. A versão homenagem-agito, sacode essa salada mista evocativa, com frases de Abu, quadros de ensaios e de espetáculos, cortinas cômicas, e outras provocações (como o título do grupo) sem amarras.  Foi a melhor forma do diretor-pupilo e do elenco devotado invocarem uma experiência coletiva, marcada por temperamento único.