quarta-feira, 27 de março de 2019

Temporada 2019/ Musicais


Crítica/ “Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava”
Tributo ao feminino

Nostálgico
- Há quase 20 anos, quando a dupla Charles Möller e Claudio Botelho estreou “Cole  Porter – Ele nunca disse que me amava”, no extinto Teatro de Arena, no mesmo shopping, onde agora retoma o musical, no Teatro Net Rio, muita coisa mudou (para melhor), para ficar tudo quase igual (com algumas diferenças). A produção de 2000, marcava os primeiros e promissores passos de Charles e Claudio na profissionalização dos musicais por aqui. Com produção modesta, mas com elenco feminino que defendia com empenho o repertório do compositor americano, a dramaturgia tinha o atrativo que reunir as mulheres da existência de Porter, e fazer de sua vida aparentemente glamorosa, um idílio permanente com a morte. A qualidade das versões de Botelho, já se impunha pela originalidade versionista e a sofisticação na paridade vernacular. O texto atual e as eventuais adaptações das letras se mantêm íntegros na comparação às originais. A produção ganhou melhores condições, as novas atrizes-cantoras maior experiência e os realizadores, maturidade, resultando em espetáculo de bom acabamento, depurada montagem e refinada comunicabilidade. Para um musical, mesmo numa reestreia, tanto tempo depois, conserva vigor e algum frescor, confirmando a boa ideia de não apenas encenar a biografia, mas  integrá-la a universos dramáticos, como o da morte e do feminino. A qualidade do trio musical – Marcelo Castro, Omar Cavalheiro e Márcio Romano – encontra correspondência no cenário de Rogério Falcão, no visagismo de Beto Carramanhos e na iluminação de Paulo Cesar Medeiros. O elenco – Alessandra Verney, Analu Pimenta, Bel Lima, Gottsha, Malu Rogrigues e Stella Maria Rodrigues – alcança equilíbrio de voz e atuação, consolidando o gênero com técnica e à brasileira.       

 Crítica/  Merlin e Arthur – Um Sonho de Liberdade"
Foco no repertório

Lendário - O antetítulo desta versão musical de uma Grã-Bretanha medieval, do reino de Camelot e dos cavalheiros da távola redonda, anuncia que o espetáculo, concebido e dirigido por Guilherme Leme, em cena no Teatro Riachuelo, é “ao som de Raul Seixas˜. Sem ainda se configurar como tendência, a substituição de trilha original por repertório de compositores populares, parece solução cômoda para integrar letras à ação, num processo mais mecânico, do que inventivo. Neste caso, e talvez por ajuste ocasional, o libreto serve à trama, com sentido e correlação. O que não é suficiente para que “Merlin e Arthur” encaixe tão bem os demais elementos cênicos. O aparato cenográfico, que apoia a narrativa de Márcia Zanelatto, cria paralelismo entre projeções grandiloquentes e planos inclinados assépticos. (A parte visual projeta bons efeitos e é assinada por Anna Turra, Camila Schmidt e Rogerio Velloso). O formalismo da ambientação não estabelece atmosfera “dramática” que envolva de magia a história lendária de cavalaria. Há um esfriamento dos fundamentos do gênero, em que a trama, em, dois tempos e sobrecarregada de detalhes, fica contraída na espetaculosidade exigida pelo caderno de encargos dos musicais, pelo menos na tradição anglo-saxã, e no desenvolvimento romanceado. Os cuidados na direção musical (Fábio Cardia e Jules Vanystad), que se estende ao desenho do figurino (João Pimenta), não é menor na preparação do elenco. As duas dezenas de atores procuram formar conjunto dedicado a interpretar, com vozes medianas, as composições, coautorias e versões do Maluco Beleza. Formam um coro integrado, mas não corpos e vozes soltas para alcançar “o sonho de liberdade”.  


Crítica/  O Som e a Sílaba”
Amplitude sonora

Operístico - Se a tentativa fosse conceituar o estilo desse espetáculo, escrito e dirigido por Miguel Falabella, em cena no Teatro XP Investimentos, talvez não pudéssemos defini-lo como musical. No máximo, uma comédia dramática com exibição virtuosística de árias de óperas. Pouco importa como se defina a relação de aluna com autismo funcional que procura professora para ganhar maior autonomia na vida. Do encontro, desenvolvido com os percalços que a dramaturgia de situações resolve com a técnica do final recompensador, chega-se a um ponto de envolvimento da plateia, que adere a diálogos aliciantes e expostos às emoções. A mais valia dessa comunicativa montagem está na dupla de atrizes-cantoras, capaz de surpreender com ampla técnica vocal e musicalidade. As exigências interpretativas não são descuidadas, já que Mirna Rubim empresta sobriedade a inflexibilidade inicial da professora e adoça suas atitudes ao longo da convivência. Alessandra Maestrini dribla, com composição corporal e vocal bem estruturadas, a armadilha de sublinhar traços de transtornos emocionais. Mas o destaque está na  voz de ambas ao interpretar árias das óperas “Tosca” e “Lakmé’” “La Bohème”, “Romeu e Julieta”, entre outras. Quando, cada uma delas, começa a cantar pela primeira vez, a plateia se surpreende com a limpidez e alcance de suas vozes, sem que abandonem as personagens. A surpresa da descoberta, de certa forma, é antecipada pelo anúncio de Miguel Falabella, antes do início da sessão, quando adverte que as atrizes cantam ao vivo, sem gravações.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Temporada 2019/ São Paulo


Crítica/ “Fim"
Magali Biff  nas fronteiras do desbafo-manifesto

É na finitude que a contemporaneidade se torna ainda mais inescapável, e de que trata o diretor Felipe Hirsch em “Fim”. Fronteiras da arte, história, linguagens, tempos, se diluem nos processos de criação, vividos como enfrentamentos em batalhas que, a meio, já apontam para derrotas. O exercício da invenção parece esgotado pela ausência de perspectivas menos nebulosas, num momento em que experiências de buscar novos códigos esbarram na impermeabilidade da recepção. Como em “Puzzle”, que marcou viragem na carreira de Hirsch, a atual montagem em cena no Sesc Anchieta, na capital paulista, se arma em quebra-cabeças de quatro quadros, escritos pelo argentino Rafael Spregelburd. Em cada um deles, e nas contribuições de André e Sérgio Sant’Anna, se distribuem as estocadas de humor cítrico e formas agridoces, num quarteto de entrechoques, culminando com um ruidosa performance cética-demolidora. Na cena inicial, “O Fim das Fronteiras”, os limites da expressão falada e dos significados que se impõem a discurso com a amplitude da dispersão, Renato Borghi  joga palavras em inglês e canta velho tango argentino, em tradução amalucada por Magali Biff. Em “O Fim da Arte”, questões acadêmicas e papel do crítico, além da restauração do passado e possibilidades de futuro, disparam tiroteio à hipocrisia de uma certa terminologia e ironia na manipulação de preceitos. Amanda Lyra interpreta com o corpo, conceitos enrijecidos, enquanto Rodrigo Bolzan implode o desuso da palavra. Em “Fim da Nobreza”, talvez a menos ajustada das quatro cenas, a arte é bufonaria para a elite mediada pelo dinheiro. Danilo Grangheia se faz duplo para figurar absurdos. Já “O Fim da História”, quando grupo teatral algo mambembe ensaia um clássico qualquer, expõe o incêndio destruidor do teatro condenado à repetição e comprometido na sua sobrevivência pelos espectros da atualidade. Mais do que posição niilista, que o título promete e a encenação não compartilha integralmente, “Fim”  é desabafo-manifesto de um corte sem suturas.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Temporada 2019/ São Paulo


Crítica/ “A Repetição. História(s) do Teatro (1)
O dramático sob o foco do documental 

Como em um ensaio, “A Repetição. História(s) do teatro (1)”, que abriu a sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, o prólogo desta encenação do suíço Milo Rau, indica que se procura uma relação da cena como o real. No foco, o assassinato, em 2012,  de um jovem homossexual de origem árabe, na cidade de Liège, deprimida pelo desemprego: um fato verdadeiro e em circunstância social definida. Na mediação teatral, a busca de formas de apreender como atores exteriores, personagens reais: uma reconstituição documental com meios convergentes. Não é exatamente o que se observa ao longo de uma exposição maior de técnica do que efetivo diálogo entre representação contestadora e o descarnamento da violência. Nos diversos apontamentos sobre o acontecimento central, expõem-se mais os mecanismos de elaboração do que intermediação dos tempos narrativos. As fracionadas e simultâneas imagens de palco e vídeo criam um olhar de justaposição. A escolha dos atores, que fazem de suas entrevistas um simulacro de mentira, antecipa a imersão no documento da verdade. O aparente jogo inicial de intervenção, modular, combativa, desafiadora, do ato teatral com a contextualização, desveladora, demonstrativa, crítica, reduz-se a um aparato construtivo, quase arquitetônico. Desta engenharia preliminar, não resulta a interposição pretendida, apenas a construção, habilidosa e tecnicamente bem elaborada, de uma montagem que se configura dramática. A cena do espancamento e a presença física de um carro, reproduz o ambiente da brutalidade, com sua carga de virulência, mas de recursos e efeitos dramatizantes. O final, remetido à igual cena do início, mostra-se um adendo dispensável, antecedido por canto musicalidade épica que sela a predominância do drama sobre os pretendidos fundamentos construtivos da encenação.