quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (27/9/2017)

Crítica/ “A Sala Laranja: no Jardim de Infância”
Reunião de pais em lúdica violência

“A Sala Laranja: no Jardim da Infância” é uma comédia que estabelece sua comunicabilidade no paralelismo entre o mundo adulto e o infantil. O texto da argentina Victoria Hladilo descreve reunião de pais para decidir o melhor funcionamento das atividades da escolinha, reproduzindo atitudes que transformam os filhos em representações mirins de competitividade, poder e frustrações. As relações entre eles, que se revelam mais íntimas do que seria suposto existir, desvendam inoportuna convivência com preconceitos e agressividade mútuas, em diferenças lúdicas de sentimentos. Na sala de recreação, cenário infantilizado para psicodrama de jogos perigosos, os contrastes com a ambientação tornam ainda mais agudos os diálogos ríspidos sobre a construção de elefante de papelão e preparativos de festas de aniversário. O eixo narrativo, à volta do qual se fazem as correspondências dos dois universos, está fixado em situações cômicas, que sem perseguir o riso como fim em si mesmo, provocam com humor inteligente, encontro agradável com a comédia. O diretor Victor Garcia Peralta distendeu a comicidade, com traços levemente dramáticos da autora, ao limite dessas fronteiras, demarcando o território de gags humorísticas com o da comédia de costumes. O ponto de convergência está no equilíbrio com que a montagem chega à plateia, fluente, envolvente, divertida. Eventual sobrecarga na trama, e pequenas fraturas na relevância de personagens, são dribladas pelo diretor pela manutenção de ritmo constante e capacidade de sustentar o interesse, mesmo quando ameaça cair. A proximidade da cena com o público, pelas dimensões do palco do Teatro Cândido Mendes, permite intimidade com a ação, capaz de preencher com o corpo a corpo das interpretações , os relativos vazios e repetições do entrecho. O cenário de Dina Salem Levy, simples, mas que ambienta, apropriadamente, uma salinha de brincadeiras infantis, acrescenta com esse visual atraente, mais envolvência à montagem. Os atores, alinhados com a cadência das falas e ao compasso dos temperamentos, trazem os personagens ao melhor foco. O elenco feminino – Renata Castro Barbosa, Isabel Cavalcanti, Priscilla Baer e Daniela Porfírio – em harmoniosa contracena com o masculino – Rafael Sieg e Robson Torinni – formam conjunto de boas performances.

domingo, 24 de setembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (23/9/2017)

Crítica/ “A última sessão”
Elenco maduro em texto imaturo


Não basta investir em temática sensível a emoções que a passagem dos anos provoca nos bons sentimentos, para que se tenha um texto comunicativo. Muito menos, se a narrativa fica indecisa entre comédia sobre velhinhos e psicodrama com citações a Shakespeare. A reunião de grupo de idosos em restaurante, aparentemente para um encontro social, tem início com a apresentação de seus participantes. Alguns simpáticos, outros mal humorados, todos com características, mais ou menos peculiares, para que se acompanhe os desdobramentos da convivência, que em suposto golpe de teatro, revelam os verdadeiros papéis de cada um na encenação de seus problemas. Odilon Wagner, autor e diretor de “A última sessão”, remenda colcha de retalhos de situações com fios desencapados de personagens estereotipados pela idade e convertidos à pantomina de rabugices. Em meio a pequenas provocações e frases shakespearianas, os idosos parecem estar mais confortáveis na sala de recreação de um asilo, do que interpretando a senilidade em um palco. A dramaturgia fraca demonstra as limitações do autor em sustentar ideia clara de envelhecimento, e de acomodar, com reverência e homenagem, elenco veterano. O diretor tem dificuldades em estabelecer a dimensão da montagem, projetando amplitude cenográfica e movimentação de atores e atrizes na contramão do espaço vivencial e do ritmo das evocações passadistas. O cenário de Chris Aizner e Nilton Aizner, pela área expandida a ser ocupada, e a iluminação de Marisa Bentivegna, pela luminosidade estourada, eliminam a possibilidade de interpretações mais intimistas e de ação concentrada. O figurino de Beth Filipecki que veste com coerência etária a maioria do elenco, é menos feliz na caracterização caricatural da personagem de Suely Franco. O elenco maduro – Suzana Faini, Miriam Mehler, Antônio Pitanga, Tânia Bondezan, Daisy Lúcidi, Rubens Araújo, Suely Franco, Odilon Wagner e Regina Sampaio – procura defender tipologia de figuras triviais.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (20/9/2017)

Crítica/ “Um berço de pedra”
Vários estilos soterrados por estética única

A maternidade é o centro dos cinco textos curtos de Newton Moreno reunidos sob construção dramática de pedra, embalada por pulsões áridas. Em registro realista, “Canteiro” acompanha mulher em busca dos restos mortais do filho, enterrado no jardim da casa de militar dos tempos da ditadura. O universo da mãe em “O caminho do milagre” se desloca para o diálogo entre a grávida e seu estuprador, ambos aprisionados por sentimentos esfacelados por confronto psicológico. “Medea” reproduz a fúria daquela que mata os filhos na dimensão trágica do clássico. No episódio que tem o título da montagem, os tempos se confundem no campo de guerra em drama de quem desenterra os despojos filiais, enquanto outra dá a luz. “Tráfego” esboça cenário social que permite menino ser vendido pela mãe em sinal de trânsito. São atitudes maternais em traços dramatúrgicos variados, que encontram em narradora entre as cenas e ambientação desértica, dramaticidade única e uniforme. O diretor e cenógrafo William Pereira estabeleceu em espaço terroso, marcado por chuva de areia, convergência plana de estilos contrastantes, como dramas sociais e psicológicos, que se mostram melhor acomodados apenas quando traduzidos como tragédia. O visual é determinante, com a colaboração da bem desenhada iluminação de Miló Martins, para criar área mítica e arquetípica, distanciada de referências localizáveis ou citações geográficas. Se trágico, a paisagem acolhe, se em outras linguagens, ilustra em excesso. Neste quadro pigmentado de pó de pedra, a direção busca matizar com coloração poética o que periga ficar soterrado no branco expressivo da pá de cal. As cenas adquirem solenidade, que avança para além da característica  de cada história, o que não impede que em alguns momentos, a audição do texto encontre correspondência com a visualidade. Belo, em seu travo rascante, “Um berço de pedra” é encenado como ritual, que o elenco cultua, reverente. Debora Duboc, como a narradora, não se distingue muito da mulher que desenterra os ossos. Lilian Blanc está intensa na procura do filho morto no jardim. Sônia Guedes constrói figura solene. Luciana Lyra é uma Medea evocativa, e Cristina Cavalcanti, imprime força na visita da grávida a seu estuprador. Jairo Mattos dá sentido masculino às consequências do desespero feminino.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/9/2017)

Crítica/ “Guanabara canibal”
A fundação da violência devoradora


A cidade como geografia violenta, se configura nos primórdios da fundação. Invasores que aportaram em lusas caravelas e cobiçaram sua posse em  francesas piratarias, dizimaram os que aqui encontraram. A população indígena, refém de uma história que lhe foi suprimida e de existência que lhe foi subtraída, está na contramão do marco fundador, figurante vitimada de escaramuças de poder e ambições de riquezas. A baia, cenário do início da cidade que tem em rio, descoberto em janeiro, a razão de seu nome, é território da voracidade por sua ocupação. “Guanabara canibal”, ritual cênico de violências históricas, aproxima versões de tempos que se repetem na continuidade de intervenções brutais. O Rio, que surge do texto de Pedro Kosovski e da direção de Marco André Nunes, é o das guerras entre 1565 e 1567, que expulsaram franceses e exterminaram índios. Os fatos são apresentados como documentos dos que desterraram os habitantes originais, sob a perspectiva da celebração do quarto centenário. Uma família se reúne para ouvir o disco que comemora os 400 anos do Rio de Janeiro em tom ufanista e exaltante do papel dos que vieram fincar bandeira. As descrições das batalhas e o tom de aniversário marcam a ambientação, vista com olhar crítico de historicidade de via única. A estrutura da montagem, em cenas escalonadas por movimentos de apresentação, confronto e silêncio, traduz, em fragmentos narrativos, aquilo que parece ter encontrado inteireza somente na sala de ensaio. A maioria das cenas tem pegada visual e força sonora, mas se tornam dispersas em palco, oscilantes entre roteirização de pesquisa e os sentidos subvertidos da linguagem. A ritualização, na qual o diretor apoia a montagem, impõe ritmos divergentes em quadros extensos, palavras silenciadas e sinais ruidosos. A cenografia, que é definida como instalação cênica, aponta para imagens performáticas de texto que propõe instigar pela reação. Na construção de múltiplos estímulos, que provocam percepções contraditórias e provocativas, se esticam os fios de conexão com a plateia, que mesmo ao se romperem, envolvem. A direção musical de Felipe Storino, a iluminação de Renato Machado, o visagismo de Josef Chasilew e a direção de movimento de Toni Rodrigues sustentam com   vigor a atuação do elenco. Carolina Virguez, João Lucas Romero, Reinaldo Junior e o menino Zaion Salomão revelam o quanto estão disponíveis para o cerimonial desta revisão canibal da história da nossa cidade. A interpretação contundente de Matheus Macena se destaca pela melhor realização do grupo, em solo que concentra a expressão pulsante do que o espetáculo poderia ter sido.