Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (6/9/2017)
Crítica/ “Guanabara
canibal”
A fundação da violência devoradora |
A cidade como geografia violenta, se configura nos primórdios da fundação. Invasores que aportaram em lusas caravelas e cobiçaram sua posse em francesas piratarias, dizimaram os que aqui encontraram. A população indígena, refém de uma história que lhe foi suprimida e de existência que lhe foi subtraída, está na contramão do marco fundador, figurante vitimada de escaramuças de poder e ambições de riquezas. A baia, cenário do início da cidade que tem em rio, descoberto em janeiro, a razão de seu nome, é território da voracidade por sua ocupação. “Guanabara canibal”, ritual cênico de violências históricas, aproxima versões de tempos que se repetem na continuidade de intervenções brutais. O Rio, que surge do texto de Pedro Kosovski e da direção de Marco André Nunes, é o das guerras entre 1565 e 1567, que expulsaram franceses e exterminaram índios. Os fatos são apresentados como documentos dos que desterraram os habitantes originais, sob a perspectiva da celebração do quarto centenário. Uma família se reúne para ouvir o disco que comemora os 400 anos do Rio de Janeiro em tom ufanista e exaltante do papel dos que vieram fincar bandeira. As descrições das batalhas e o tom de aniversário marcam a ambientação, vista com olhar crítico de historicidade de via única. A estrutura da montagem, em cenas escalonadas por movimentos de apresentação, confronto e silêncio, traduz, em fragmentos narrativos, aquilo que parece ter encontrado inteireza somente na sala de ensaio. A maioria das cenas tem pegada visual e força sonora, mas se tornam dispersas em palco, oscilantes entre roteirização de pesquisa e os sentidos subvertidos da linguagem. A ritualização, na qual o diretor apoia a montagem, impõe ritmos divergentes em quadros extensos, palavras silenciadas e sinais ruidosos. A cenografia, que é definida como instalação cênica, aponta para imagens performáticas de texto que propõe instigar pela reação. Na construção de múltiplos estímulos, que provocam percepções contraditórias e provocativas, se esticam os fios de conexão com a plateia, que mesmo ao se romperem, envolvem. A direção musical de Felipe Storino, a iluminação de Renato Machado, o visagismo de Josef Chasilew e a direção de movimento de Toni Rodrigues sustentam com vigor a atuação do elenco. Carolina Virguez, João Lucas Romero, Reinaldo Junior e o menino Zaion Salomão revelam o quanto estão disponíveis para o cerimonial desta revisão canibal da história da nossa cidade. A interpretação contundente de Matheus Macena se destaca pela melhor realização do grupo, em solo que concentra a expressão pulsante do que o espetáculo poderia ter sido.