quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/8/2017)

Crítica/ “Tudo o que há Flora”
Sinais trocados de um boulevard

À semelhança do trocadilho do título, a linguagem desta comédia de pretensão discutível é feita de inversões dos sentidos das palavras e da  trama dos contrários. A rotina da dona de casa Flora, à espera da chegada do marido para o almoço do arroz de todo dia, é interrompida pela presença de dois outros homens, seus amantes ocasionais. Driblar a chegada, sempre anunciada e somente concretizada quando o jogo de disfarces mistura peças de verdades e mentiras que recompõem o cotidiano, se assemelham a um boulevard cheio de intenção. Em diálogos fartos de provérbios invertidos e frases feitas distorcidas, a narrativa de Luiza Prado se deixa enredar na indefinição do estilo do humor, perdida nas brincadeiras verbais e no nonsense das situações. Ao acrescentar toques de absurdo a rubricas teatrais, como a menção a uma terceira parede, a autora completa o roteiro de efeitos cômicos para um texto que se imagina inventivo. O cenário de Fernando Mello da Costa e a supervisão de movimento de Janice Botelho, mais do que a direção de Daniel Herz, são os elementos que confirmam, visualmente, as reais características do humor “sem noção”. O cômodo com porão repleto de objetos e cortado por buracos, por onde aparecem os atores, em sincronizados movimentos, ganha dinâmica de entra e sai, que atenua as quedas de interesse nas discursivas intervenções. A cena final, com os eletrodomésticos e a água em simbólicas referências, é mais um traço de que o visual centraliza a montagem. O diretor, mesmo procurando acelerar o tempo cênico, fica contido pela troca de piadinhas verbais, melhores interpretadas por significados corporais. Os atores correspondem a essa movimentação física, numa ação rítmica que contrabalança o riso inalcançável. Lucas Drummond e Thiago Marinho, ágeis na combinação de corpo e voz, intensificam suas atuações, superando os vácuos do texto. Rainer Cadete, em impostação menos física, procura o mistério que ronda o marido. Leila Savary interpreta com convicção tudo de bom e ruim que há na Flora.