segunda-feira, 28 de abril de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (23/4/2014)

Crítica/  2 x Matei
Paródia da espera do fim do teatro

A reunião de dois textos curtos do romeno Matéi Visniec demonstra, em estilos narrativos contrastantes, a unidade de um humor ácido que investe contra o poder, a política e o teatro. Na utilização da palavra como arma demolidora da irracionalidade, e na manipulação de linguagens como veículo corrosivo da forma, Visniec aponta para alvos que são desmontados em seus próprios termos. Em “O Último Godot”, personagem e autor são expulsos do teatro onde se apresenta, para uma plateia vazia, “Esperando Godot, de Samuel Beckett. Neste encontro com ar de fim de partida, Godot exige de Beckett pelo menos uma única fala, ainda que seja apenas “não”. Paródia da espera do fim do teatro, lugar desprezado e abandonado pelo público, resta somente a miragem de uma sala lotada, cena fugaz entre diálogos sem qualquer esperança. Em “O Rei, o Rato e o Bufão do Rei”, convivem em um calabouço, à espera da execução, o rei e seu bufão, que dissecam o poder e conferem aos ratos projeção humana. Fábula sobre a ambiguidade e a falsidade do conhecimento como meios de construir mentiras históricas,  repassa a política como exercício inútil. Dramaturgia que reflete tradição literária e citações clássicas, às quais se acrescentam questões políticas da Europa Central e outras tantas referências, o teatro de Matéi Visniec explora contradições sociais e complexidades da própria criação, permitindo vários níveis de apreensão de seus textos. O diretor Gilberto Gawronski deixou evidente a sua escolha pelo viés, essencialmente teatral, de cada um das pequenas peças. A atmosfera do Godot original se estabelece a partir de figurino identificado e da reprodução da figura de Beckett, que desvendam, crescente e sutilmente, suas identidades. Já a bufonaria das caracterizações e a irreverência na atuação descrevem formalismo cênico, que rivaliza, esmaecendo até certo ponto, com as firulas do texto. É uma opção diante de obra referencial, carregada de símbolos e metáforas que se confirmam pelo modo como são recebidas pelo repertório do espectador. Gawronski acertou no cenário da primeira parte, em que uma rua desolada, branca, asséptica, com bueiros que soltam fumaça dos esgotos, ambienta como memória cênica a expectativa becketiana. Na segunda parte, quando o mesmo cenário serve de prisão, e os adereços são introduzidos de maneira canhestra e confeccionados precariamente, o quadro se empobrece, sem comprometer os coloridos e bem executados figurinos de Antonio Medeiros. Como ator, Gawronski se acomoda num segundo plano em tímida composição física do Beckett de farsa, se retraindo ainda mais como o rei algo bufão. Guida Vianna aciona diferentes códigos de humor para explorar a presença do improvável Godot e a ironia do bobo falastrão. Na cena em que ensaia discurso para o rei com chavões latinos e a que conclui que o poder está nas mãos daqueles que impõem sentidos às palavras, Guida Vianna encontra o seus mais eloquentes momentos em cena.        

sábado, 26 de abril de 2014

Festivais

3ª Cena Brasil Internacional
O gesto físico ao encontro do movimento interior

Dos à Deux – Segundo Ato é a recriação do primeiro espetáculo da dupla Artur Ribeiro e André Curti, estreado em 1998, e que daria o nome do grupo em atividade até hoje, na França e no Brasil. Assistir ao início do trabalho de criação de Ribeiro e Curti só confirma a base sólida sob a qual se estabelece trajetória de coerência estilística e de permanente investigação dos fundamentos expressivos. Nesta montagem, os personagens evocam  Esperando Godot  e a ambientação lembra imagens de Beckett, mas o tempo cênico é marcado por poética agridoce própria, na qual o gesto físico busca figurar o movimento interior. Os dois vagabundos, soltos sob uma árvore seca, se debatem numa constante disputa por pequenas conquistas em interminável procura de um lugar de precedência no nada. Com dois dispositivos cênicos (cadeiras que se desdobram em formas geometricamente mutáveis), iluminação de sensíveis zonas de sombras e de luminosidade e música essencial à atuação sem palavras (trilha e composições originais de Fernando Mota), os dois atores franceses, Clément Chaboche e Guillaume le Pape, que substituem Ribeiro e Curti, intérpretes da versão original, reproduzem o fluxo de movimentos que constroem tão refinadamente a narrativa. Para além da segurança técnica na realização desse balé-malabarista-corporal-tragicômico, Chaboche e Pape desempenham uma coreografia dramatúrgica em que os gestos nascem de uma ideia cênica, que se transforma em outra, sem que o espectador se dê conta da passagem. É um turbilhão gestual que retira da ação física sua projeção dramática e poética. Dos à Deux – Segundo Ato traçou os rumos de um grupo que com o seu último espetáculo, Irmãos de Sangue, demonstrou que, se mantendo fiel ao primeiro impulso, encontrou forças renovadoras para demarcar, na décima montagem depois,  a sua vigorosa permanência.                  

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Festivais

3ª Cena Brasil Internacional

A terceira edição do festival Cena Brasil Internacional, que ocupa o Centro Cultura Banco do Brasil e a praça dos Correios ao lado, está menor em tamanho em relação às versões anteriores, mas mantém conceito de curadoria que aponta para espetáculos brasileiros produzidos por grupos estabelecidos e que estão no repertório das companhias há alguns anos. Ainda que a maioria não tenha sido vista pela plateia do Rio, uns poucos já fizeram apresentações na cidade, como O Gigante da Montanha, do mineiro Galpão e Sua Incelença, Ricardo III, do potiguar Clowns de Shakespeare.
Efeitos encantatórios de uma tragédia
O picadeiro belamente mambembe, onde transcorre a tragicomédia de um Ricardo III nordestinamente circense do grupo do Rio Grande do Norte, ambienta essa transcrição da vilania do personagem shakesperiano para o clownesco e a grandiloquência do circo-teatro. Justificando, explicitamente, o seu nome, o grupo incorporou o universo nostálgico-visual de Gabriel Villela, refinando com  poética ingênua, a tragédia que se realiza em interposta narrativa. Não é mais a tragédia clássica, menos ainda reinterpretação à procura de dar outro sentido ao trágico, mas o desenvolvimento de linguagem sobre  a  qual se constrói a cena. As máscaras e a música, as pantomimas dos palhaços e a ourivesaria da estética sertaneja, desestruturam o ritualismo do teatro clássico e o sombrio do elizabetano para retomar a representação como experiência formal, que se erige como um valor em si mesmo. Nada se perde, algo se acrescenta. Shakespeare não sai diminuído, e a imagética e o universo de Villela se confirmam, provocando reação encantatória na plateia.
Delicada ponte de afetos com tempo marcado

Da abertura da mostra, na terça-feira, até o dia 4 de maio, quando termina, está  se apresentando a intervenção Todo lo que está a mi lado, do argentino Fernando Rúbio, que reúne na rotunda do CCBB sete camas de casal, nas quais sete espectadores se deitam ao lado de sete atrizes para compartilhar texto evocativo da passagem do tempo. Por apenas dez minutos, as atrizes sussurram uma vaga história sobre a infância, aparentemente à espera de que o espectador que está tão próximo, reaja, no plano emocional, ao que ouve. Pelo caráter quase memorialístico do texto, a eventual tensão dramática que a proximidade física possa estabelecer como intimidade, se concretiza (e cada espectador reage de uma maneira) com suaves toques que criam delicada ponte de afetos com tempo marcado. Uma experiência de ação vivencial teatralizada através da privacidade dos meios expressivos.

sábado, 19 de abril de 2014

Temporada 2014

Crítica/ E se Elas Fossem para Moscou? (Filme)
Um filme que se constrói no palco...
 
e desvenda tensão na tela
Na sua face cinema, com a exibição do filme na Sala Multiuso, que tem as suas imagens captadas na encenação de E se Elas Fossem para Moscou, que acontece no Mezzanino, se estabelece uma simultaneidade determinada pelo tempo das ações, separado pela distância física (uma sala fica acima da outra no Espaço Sesc), aproximando-os pela possibilidade de receber a mesma montagem filtrada por duas técnicas: cinema e teatro. Ao espectador é oferecida, no palco, a teatralização do filme, que se constrói como edição da cena que se faz linguagem como preparação (cenário/set, participação da plateia como figuração e paralelismo na atuação do elenco) para a obra fílmica. (Leia a crítica sobre a encenação na postagem de 20 de março). São dois momentos autônomos, mas indissolúveis como elementos que geram criações interdependentes, tanto que não podem ser vivenciados juntos: separados pela utilização de dois espaços, unidos pela duração comum. E é exatamente nesta correlação de tempo compartilhado e espaço a ser conquistado, que a diretora Christiane Jatahy avança na investigação cine-teatral, que desenvolve há pelo menos quatro montagens. Baseado em As Três Irmãs, de Anton Tchekov, a encenação propõe com os meios expressivos que servem a estruturação do filme, um relativo esmaecimento do núcleo dramático, no qual as personagens procuram algo que nunca atingem, imobilizadas por inação emocional. A preparação das cenas, cortadas pela necessidade da edição de um filme, que se sabe está sendo realizado e que é a razão mesma deste teatro filmado a que se assiste no palco, estilhaça a tensão dramática ao ponto de fragmentá-la em quadros que se montam continuamente para registro das imagens. Ao contrário, ao se ver o resultado na tela, em que as cenas já estão decupadas, eliminada a presença do público, dos contrarregras, reduzida a intervenção masculina, e enquadrado o cenário, a tensão se estabelece com maior intensidade em closes techecovianos. A forma como os dois planos tornam possível a percepção de forças dramáticas diversas (mais apagada no teatro e mais condensada no cinema) se reflete, decisivamente, na avaliação do trabalho das atrizes. Ainda que ao mesmo tempo, as mesmas atuações ganham outra perspectiva. É possível reavaliar as interpretações sob a ótica de cada meio:  Julia Bernart se desloca para a área de contracena; Stella Rabello movimenta-se numa zona de sombra e Isabel Teixeira assume protagonismo de primeiros planos.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (16/4/2014)

Crítica/ Oleanna 
Vozes pendulares no exercício do poder
Como em outros de seus textos, David Mamet caracteriza em “Oleanna” atitudes de personagens que emergem de uma América emocional profunda. A aluna que vai ao gabinete do professor para confrontá-lo pela nota baixa, desencadeia diálogo em que o exercício do poder e a alternância das posições de controle são conduzidos pela prática do mal. Aparentemente, a aluna parece um tanto obtusa na apreensão dos conceitos ensinados pelo professor, que por seu lado, se mostra impaciente com a inoportuna visita. A reprovação pode levar à saída da faculdade e frustrar o esforço de quem, por sua origem social, teve dificuldades à entrada e luta pela permanência. A compra da casa própria e a iminência de ascender na carreira acadêmica são desejos de futuro do profissional de classe média. No decorrer do encontro, as perguntas mal respondidas por ele e a sua visível impaciência se transformam em manipulação interpretativa por ela, que o acusa de assédio sexual a partir do ardil subjetivo que elaborou nas entrelinhas do que ficou  encoberto pela ambiguidade no uso das palavras. Mamet descreve os dois momentos em atos que se completam na forma detalhada como se interpõem, em intensidade dramática controlada pelo ritmo interno da narrativa e pelo deslocamento do jogo de forças. O diretor Gustavo Paso conduz a cena sob o mesmo substrato da ação, zona por onde caminha a tensionada a montagem, sem trair o seu enquadramento realista. O conflito de ressonância subterrânea é sustentado por vozes pendulares cujo eixo está na palavra ouvida e na palavra revisada, plano de que Paso não se desvia na cuidadosa preservação do significado, essencialmente, verbal da trama. O cenário de Gustavo Paso e Teca Fichinski, que redesenha o espaço da representação, colocando a plateia em campos frontais, amplia a teatralidade, para qual a iluminação de Paulo Cesar Medeiros, o figurino de Jô Resende e a música original de André Poyart são bons elementos funcionais. O elenco corresponde ao duelo camerístico de atuações em dosagem bem medida. O papel de professor, interpretado em duas versões, a masculina e a feminina,  confirma a segurança do diretor na condução dos atores. Luciana Fávero projeta o comportamento de vagas intenções da aluna no primeiro quadro, para acrescentar, com pequena e exata subida de tom, firmeza maldosa no segundo quadro. Marcos Breda em atuação discretamente delineada, que registra em nuances as reações do professor, trabalha com inteligente sobriedade a trajetória de sentimentos que se invertem até atingir a eloquência do ódio. Uma interpretação límpida. Miwa Yanagizawa ultrapassa com certa hesitação a mudança de gênero, pelo atropelo como a adaptação ao feminino desequilibra o entrecho. Sua interpretação é mais confrontadora, a princípio, mas que ao se reproduzir quando a aluna se revela, deixa o papel da professora menos nítido. E por força da transposição de sexo, a  última cena da atriz fica atabalhoadamente confusa.      

terça-feira, 8 de abril de 2014

Prêmios

 8º Prêmio APTR

 A Associação Carioca de Produtores Teatrais divulgou em festa no Imperator os vencedores da temporada 2013 do 8º Prêmio APTR de Teatro. Os premiados:
Marcelo Olinto: melhor ator
Autor: Jô Bilac (Conselho de Classe)

Direção:  Bel Garcia e Susana Ribeiro (Conselho de Classe)
                    
Cenografia: Fernando Mello da Costa (Incêndios)

Figurino: Tanara Schonardie (A Importância de Ser Perfeito)

Iluminação: Maneco Quinderé (Jim)
                       
Ator Protagonista: Marcelo Olinto (Conselho de Classe)

Atriz Protagonista: Marieta Severo (Incêndios)

Ator Coadjuvante: George Sauma (A Importância de Ser Perfeito)
                      
Atriz Coadjuvante: Clarisse Derzié Luz (À Beira do Abismo Me Cresceram Asas) e Kelzi Ecard (Incêndios)
                                
Espetáculo: Incêndios
                
Música: Ricco Vianna (Jim)
                 
Categoria Especial: Camila Amado pelos 50 anos de carreira                        

domingo, 6 de abril de 2014

Festivais

23º Festival de Curitiba

Em mais esta edição, o Festival de Curitiba mantém-se fiel à sua caudalosa programação, oficial e fringe, com espetáculos que se espelham como textos, se aglutinam em grupos e se definem como possibilidades. Dois exemplos.
Sacudidelas desafiantes no realismo
Sonata de Outono, a adaptação teatral do argentino Daniel Veronese para o filme de Ingmar Bergman, antes de procurar estabelecer proximidades entre entre palco e tela, procura uma identificação cênica em que o papel dos atores é determinante. Sem os closes do cinema, mas com a amplitude de interpretações expandidas, Veronese cria uma montagem que deixa transparecer a emergência de sentimentos subterrâneos, que eclodem em palavras duras e ódio amoroso. O entrechoque de mãe e filha, que se reencontram para numa longa noite de revelações de ressentimentos e de verdades subtraídas, deixa à mostra o que se acumulou com a distância do tempo. Meias verdades, gestos inconclusos, degeneração física e emocional, vozes religiosas e ressonâncias de mortes permeiam a vida das duas mulheres, incapazes de construir pontes de contato a partir de caudal tão intempestivo. Numa estrutura de drama psicológico realista, o diretor desidrata a cena de quaisquer efeitos para além da contundência dos diálogos de carga emocional, para trazer à tona os abalos de um terremoto afetivo de alta intensidade. O cenário, de mobiliário branco, neutro, sem adereços, iluminado com variações mínimas de intensidade, com a utilização da música (elemento dramático deflagrador) com mínima intervenção, Veronese concentra a ação no elenco, ponto de convergência desse realismo alterado. Não há melodrama, muito menos verismo dramático, mas um fulgor expositivo que desvenda, ao contrário de sublinhar. Se os dois atores que interpretam o marido e a irmã têm presença de perfeita complementação, Cristina Banegas (a mãe) e Maria Onetto (a filha) dimensionam as personagens ao limite da sua desconstrução, modulando um naturalismo enganador às sacudidelas de um realismo desafiante. 
Hemisférios verbais dissonantes

Nus, Ferozes e Antropófagos, um trabalho ainda em processo entre a Companhia Brasileira de Teatro e o Centro Dramático Nacional de Limousin, na França, foi apresentado no festival como resultado de apenas cinco encontros, em estadias de dez dias nos dois países. Mesmo ainda cru na sua construção – a estréia será Limoges, em maio – a estrutura dramatúrgica está definida. Países e culturas tão diferentes na forma com se estabelecem como identidades nacionais se põem em situações paralelas diante das quais as dissemelhaças aproximam a humanidade comum. Esta é, pelo menos, o que a encenação de três diretores – o brasileiro Marcio Abreu e os franceses Pierre Pradinas e Thomas Quillardet – e do grupo de dez atores de ambas nacionalidades promete de início, com a provocação do título e a cosmologia de uma geografia universal. Ao longo do espetáculo, essa ideia vai se perdendo numa sucessão de cenas que se apóiam na crônica de costumes, no intercâmbio de clichês e observações turísticas, que disfarçam a nudez, ameaçam a ferocidade e não deglutem a antropofagia. É divertido o coro dos gestos diferentes para um mesmo significado, como são os desacertos entre hemisférios verbais em torno do eurocentrismo. Mas são menos felizes, as aulas de lambada, de correção da pronúncia da cantora e a de etiqueta à mesa. Por demais superficiais os comentários sobre idiossincrasias culturais mútuas acabam por encobrir o pretendido caráter político das características históricas formadoras e da memória social contemporânea. Não se trata de ter sido este somente um ensaio, que pela primeira vez se defronta com as platéias. É um processo de colaboração artística internacional em que se tem a impressão de que ficou na travessia do Atlântico imprimir ousadia a um impulso inicial provocativo.