23º
Festival de Curitiba
Em mais esta edição,
o Festival de Curitiba mantém-se fiel à sua caudalosa programação, oficial e
fringe, com espetáculos que se espelham como textos, se aglutinam em grupos e
se definem como possibilidades. Dois exemplos.
Sonata de Outono, a adaptação teatral do argentino Daniel
Veronese para o filme de Ingmar Bergman, antes de procurar estabelecer
proximidades entre entre palco e tela, procura uma identificação cênica em que
o papel dos atores é determinante. Sem os closes do cinema, mas com a amplitude
de interpretações expandidas, Veronese cria uma montagem que deixa transparecer
a emergência de sentimentos subterrâneos, que eclodem em palavras duras e ódio
amoroso. O entrechoque de mãe e filha, que se reencontram para numa longa noite
de revelações de ressentimentos e de verdades subtraídas, deixa à mostra o que
se acumulou com a distância do tempo. Meias verdades, gestos inconclusos,
degeneração física e emocional, vozes religiosas e ressonâncias de mortes
permeiam a vida das duas mulheres, incapazes de construir pontes de contato a
partir de caudal tão intempestivo. Numa estrutura de drama psicológico
realista, o diretor desidrata a cena de quaisquer efeitos para além da
contundência dos diálogos de carga emocional, para trazer à tona os abalos de
um terremoto afetivo de alta intensidade. O cenário, de mobiliário branco,
neutro, sem adereços, iluminado com variações mínimas de intensidade, com a
utilização da música (elemento dramático deflagrador) com mínima intervenção, Veronese
concentra a ação no elenco, ponto de convergência desse realismo alterado. Não
há melodrama, muito menos verismo dramático, mas um fulgor expositivo que
desvenda, ao contrário de sublinhar. Se os dois atores que interpretam o marido
e a irmã têm presença de perfeita complementação, Cristina Banegas (a mãe) e
Maria Onetto (a filha) dimensionam as personagens ao limite da sua
desconstrução, modulando um naturalismo enganador às sacudidelas de um realismo
desafiante.
Nus,
Ferozes e Antropófagos, um trabalho ainda em
processo entre a Companhia Brasileira de Teatro e o Centro Dramático Nacional
de Limousin, na França, foi apresentado no festival como resultado de apenas
cinco encontros, em estadias de dez dias nos dois países. Mesmo ainda cru
na sua construção – a estréia será Limoges, em maio – a estrutura dramatúrgica
está definida. Países e culturas tão diferentes na forma com se estabelecem
como identidades nacionais se põem em situações paralelas diante das quais as dissemelhaças
aproximam a humanidade comum. Esta é,
pelo menos, o que a encenação de três diretores – o brasileiro Marcio Abreu e
os franceses Pierre Pradinas e Thomas Quillardet – e do grupo de dez atores de
ambas nacionalidades promete de início, com a provocação do título e a
cosmologia de uma geografia universal. Ao longo do espetáculo, essa ideia vai
se perdendo numa sucessão de cenas que se apóiam na crônica de costumes, no
intercâmbio de clichês e observações turísticas,
que disfarçam a nudez, ameaçam a ferocidade e não deglutem a antropofagia. É
divertido o coro dos gestos diferentes para um mesmo significado, como são os
desacertos entre hemisférios verbais em torno do eurocentrismo. Mas são menos
felizes, as aulas de lambada, de correção da pronúncia da cantora e a de
etiqueta à mesa. Por demais superficiais os comentários sobre idiossincrasias
culturais mútuas acabam por encobrir o pretendido caráter político das
características históricas formadoras e da memória social contemporânea. Não se
trata de ter sido este somente um ensaio, que pela primeira vez se defronta com
as platéias. É um processo de colaboração artística internacional em que se tem
a impressão de que ficou na travessia do Atlântico imprimir ousadia a um
impulso inicial provocativo.