domingo, 30 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/8/2015)

Crítica/ “Estúpido cupido” 
Lembranças da juventude em uma bolha de sabão
A comédia musical de Flávio Marinho não tem a pretensão de ser nada   mais do que aquilo a que se propõe: um espetáculo leve, despretensioso e nostálgico. Inspirada em novela de televisão dos anos 70, igualmente leve e despretensiosa, “Estúpido cupido” ilustra trama ingênua de lembranças da adolescência, revividas em reencontro do mesmo grupo na maturidade, durante uma festa de confraternização. Antigos apelidos e imagens da gorda, da bonita e da desinibida, ao lado do garoto certinho e do playboy não deixam esquecer a agora magra, a ainda bela e aos imaturos rapazes de como eram as festinhas da juventude. Embalados por trilha musical dos bailinhos teen, repetem picuinhas e procuram romances com a mesma pegada dos namoricos dos anos, mais ou menos, dourados. Nesta história em que não se quer complicar o já descomplicado, esqueçam-se personagens e deixem-se levar pelas joguinhos amorosos, e pela cor do biquíni e a falta de mira da seta do cupido. Para dar algum balanço e ritmo às situações tão simples, o autor cria perfis duplos que contracenam no tempo e estabelecem um jogo de espelhos da imagem tremida das televisões em preto e branco com o ruído das mensagens dos atuais bailes funk. A montagem de Gilberto Gawronski não poderia estar mais alinhada com a linguagem do texto e o estilo das músicas. No cenário funcional de Clívia Cohen, que a iluminação de Paulo César Medeiros dá um colorido vibrante, o diretor agita o elenco para facilitar a integração da música à narrativa. A direção de movimento de Mabel Tude reproduz o balanço dos corpos ao ritmo dos passos do momento, e os figurinos de Clívia Cohen e Clara Cohen acrescentam tonalidades às saias rodadas e reproduzem faixas de misses  e roupa de couro de lambretistas. A direção musical de Liliane Secco e o trio de músicos (Felipe Aranha, Guilherme Viotti e Jean Campelo) encorpa o           volume sonoro e atualiza a batida das canções. Os atores – Françoise Forton, Aloísio de Abreu, Clarisse Derzié Luz, Sheila Matos, Carlos Bonow, Carla Diaz, Luisa Viotti, Julia Guerra, Ryene Chermont, Mateus Penna Firme e Ricardo Knupp – se equilibram os que cantam melhor, de outros que interpretam com maior intimidade e recursos para a comédia. Ao final, todos atendem ao que esta produção não disfarça: a diversão juvenil. E nada dá mais significado a versão teatral da ingênua música cantada por Cely Campelo, do que as bolhas de sabão que se espalham pela plateia do imenso Imperator.     


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/8/2015)

Crítica/ “Chaplin o musical”
O vagabundo do cinema mudo em versão de musical biográfico

O formato desse musical biográfico segue, com algumas variantes, os padrões clássicos do gênero. A história do menino pobre de pais artistas, que deixa a Inglaterra para fazer carreira no cinema nos Estados Unidos, é contada em detalhes: do sucesso de Carlitos ao exílio europeu. Numa tão extensa e pormenorizada sequência de acontecimentos, Chaplin é apresentado em paralelo à sua obra e de como sua vida se transforma em filmes e a família em personagem. Os miseráveis da Londres do início do século passado se reúnem em uma só figura, a do vagabundo lírico. Os problemas psicológicos da mãe e a fidelidade do irmão Sidney,  dão elementos para caracterizar o comportamento do amante de muitas mulheres e do ativista acusado de comunista, entre tantos outros percalços de um temperamento criador. A condensação de fatos e a exposição da obra percorrem os 88 anos de uma existência atribulada, tentando equilibrar  aspectos emotivos com objetividade narrativa. Essa comédia musical americana, que tem versão brasileira de Miguel Falabella, procura encaixar o farto volume de informações nos limites dramáticos de uma categoria de montagem voltada aos efeitos. Música, coreografia, cenário são predominantes e embrulham a trama para tornar o diálogo com o espetacular mais atraente, o que em “Chaplin, o musical” provoca algum atrito. O primeiro ato, com a movimentação intensa do cenário e algum malabarismo coreográfico, permite que o entrecho se ajuste com maior facilidade aos códigos do musical. No segundo, a ação tem menor flexibilidade para se integrar à inexpressiva trilha sonora  e driblar o enquadramento aos mecanismos feéricos. O diretor argentino Mariano Detry reproduziu o original da Broadway com as necessárias aclimatações nacionais. O eficiente cenário e os perfeitos adereços, além dos bem desenhados e executados figurinos e a qualidade dos músicos e da regente Beatriz de Luca, revestem a cena de estrutura sólida e ambientação comunicativa. Nos quadros de music hall ressaltam essas qualidades que se atenuam na sequência política e no encontro com Oona, a mãe dos seis filhos de Chaplin. As canções de poucas nuances, contribuem para o descompasso entre a monotonia musical e a exuberância biográfica. Mas a uniformidade interpretativa do elenco supera qualquer obstáculo ao ritmo e a fluidez dos trechos mais sentimentais e levanta a plateia na junção do velho Chaplin ao saltitante Carlitos na última cena. Jarbas Homem de Mello protagoniza, não apenas vestindo a figura do vagabundo do cinema mudo, mas como ator-cantor-mímico-acrobata a quem se exige múltiplos recursos para alcançar atuação harmônica. Marcelo Antony tem participação tão discreta quanto a função coadjuvante de Sidney Chaplin. Paulo Goulart Filho explora o lado cômico de Mack Sennett, e as atrizes Naíma (Hannah Chaplin) e Giulia Nadruz (Oona O’Neill) exibem  a excelência de suas vozes. Paulo Capovilla aproveita a oportunidade de aliar a ótima voz à vilania da intrigante Hedda Hooper.   

domingo, 23 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (23/8/2015)

Crítica/ “Querido Brahms”
Correção bem comportada de amor e loucura 

O trio de músicos, a pianista Clara e os compositores Robert Schumann e Johannes Brahms, se reencontra no momento em que cada um vive as dúvidas de saber como agir e quais os verdadeiros laços que os une. A mulher de Schumann busca conselhos de Brahms para decidir o futuro do marido, que em processo crescente de perda da razão em consequência da sífilis, acaba de tentar o suicídio nas águas do rio Reno, no inverno de 1854. O pedido de ajuda de Clara para decidir se interna ou não Robert, envolve  indisfarçável sedução da mãe de vários filhos, condenada a ser dona de casa, na conquista de Johannes, num triângulo amoroso de lados incompletos. O ambiente e os ciúmes entre compositores, em especial as farpas de Schumann contra Wagner, expõem fragilidades de criadores temperamentais na efervescência do romantismo musical alemão. O texto de José Eduardo Vendramini condensa, em não mais do que 70 minutos, os conflitos desencadeados por relações atormentadas, recriados como extensões ficcionais da veracidade. Fatos reais ganham a precisão de diálogos refinados, decantados de pesquisa sólida, transformada em cenas de milimétrica construção dramática. Mesmo sem encontrar solução para o final, ao desequilibrar o quadro, apresentando descritivamente o futuro dos personagens, não escapa a Vendramini a intenção de uma escrita límpida. O depuramento excessivo é o maior problema da narrativa, que evita sair do eixo da correção. Não há lugar para avanços e ousadias, apenas o de perseguir a trilha do bom acabamento, o que pode ser considerado, tanto mérito quanto estilo. O diretor Tadeu Aguiar transfere, com a disciplina de um seguidor, as características tradicionais do autor em montagem apoiada na palavra como ação interior, subterrânea à trama. Aguiar expande nas duas cenas em que se divide “Querido Brahms”, praticamente dois monólogos centrados em Clara e Schumann, o caráter intimista dos embates, nos quais interfere com a mesma prudência pela exatidão. A cenografia e figurino com atmosfera de época e a criteriosa introdução da música reforçam o aspecto envolvente pretendido pelo diretor. A sensação de que tudo está no seu lugar se reflete também no elenco. Os atores desempenham seus papéis com a disciplinada da correção, sem pretensões de voos interpretativos. Estão, simplesmente, corretos. O Brahms de Olavo Cavalheiro é apenas um ouvinte coadjuvante que surpreende ao cantar o belo lied de Schumann. Carolina Kasting empresta sua beleza e altivez à Carolina, contemplando mais o caráter da platônica sedutora do que da mulher diante da loucura do marido. Werner Schünemann leva um pouco mais adiante e com alguma transgressão os tormentos do decadente Schumann.          

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/8/2015)

Crítica/ “Mantenha fora do alcance do bebê”
A adoção de um mundo ameaçador 
No texto de Silvia Gomez, o absurdo da realidade é exposto em sua lógica desordenada. A candidata à adoção de uma criança desencadeia em conversa com a assistente social suas improváveis razões para conseguir levar um bebê para casa. De um lado, a burocrata com suas ponderações e códigos de conduta, de outro, a postulante à maternidade desfiando lista de obrigações e argumentos, ambas observadas por representante, aparentemente domesticado, de um bando de lobos. A presença do marido, solicitada para contornar a situação, desvenda o obscuro e ilumina o desfecho. Os papéis sociais estão estabelecidos, e cada um desempenha suas funções como parte de um quadro em decomposição, no qual linguagem e comportamento estão nivelados por uma ordem comum. Na máquina coletiva de triturar as individualidades, os sentimentos se desestabilizam e são engolidos pela uniformização, que descaracteriza e por emoções desestabilizadas. Adotar um bebê desvenda a dor de uma perda e desmascara falsos desejos criados por necessidades impostas. A narrativa com diálogos afiados e atmosfera surreal, recorre a signos da dramaturgia do absurdo na tentativa de acentuar a padronização da natureza animal dos instintos. Um tanto marcada por essa influência, a autora mineira de 37 anos, expande com alguma originalidade e domínio da escrita os limites das referências, desfocando a veracidade num relato compacto e levemente provocativo. O diretor Eric Lenate lança tensão dissimulada pelo clima de estranhamento, capturada pelos gradativos sinais que as palavras apontam e a ambientação confronta. A brancura do cenário em movimento, a crueza dos adereços, o colorido da iluminação e a sonorização ameaçadora, abrem espaço ao supra-real e ao desencontro da insensatez com a banalização. A montagem mantém a plateia  em permanente inquietude, na expectativa do que virá em seguida, sintonizada no fluxo das motivações intrigantes dos personagens. O diretor acompanha com humor e desalento irônicos, e ao mesmo ritmo ágil da autora, o desenrolar da trama sobre uma sociedade sem perspectivas, assolada pela dança dos lobos. A primeira e a última cenas sintetizam e  adensam com força dramática, a imagem desoladora da vida normatizada. Diego Dac empresta o corpo à coreografia mascarada de uma fera sempre rondando e pronta ao ataque. Jorge Emil confere maior peso ao personagem circunstancial do marido. Anapaula Csernik em interpretação de conotação corporal, desenha a assistente social em mímica crítica à palavra burocrática. Débora Falabella demonstra segurança na apropriação do delirante esfacelamento verbal da mulher, devastada pelo choro de bebês e em alerta pela proximidade da animalidade imprevisível.              


domingo, 16 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/8/2015)

Crítica/ “BR-trans”
Versão performática da violência dramática

Ao entrar na sala, o publico encontra uma figura masculina de rosto maquiado e vestido vermelho, que balança o corpo ao som monótono de uma única batida. Em seguida, o figurino se desfaz e fica-se a saber que a imagem era de Gisele, personagem do ator cearense Silvero Pereira, que utiliza o corpo para escrever cenicamente vivências de travestis e transexuais. Na pesquisa que reuniu depoimentos e notícias, Silvero reconstitui fatos que denunciam preconceito e violência, projetando através de imagens e música documentais a busca de outra significação do corpo e de maior voltagem às reações de repulsa aos símbolos da transformação da sexualidade. São histórias reais refletidas num painel de casos, tratados como exposição performática de forte conotação e referência visuais e sob o formato de manifesto contra atos cruéis e preconceituosos. ‘BR-trans” percorre esse arco dramático como um caminho previsível, capaz de provocar recusa diante da brutalidade, mas apenas reproduzir sinais externos das contradições  de uma realidade e de um imaginário. A projeção de cenas de assassinatos são contundentes, porque verdadeiras e inaceitáveis, provocando impacto e desempenhando a função de exibir para indignar. A seleção dos relatos surge com menor aproveitamento narrativo, e não convive com muita naturalidade com a personagem vivida pelo ator. A integração entre notificação e vivência é prejudicada pelo tratamento domesticado aos comentários inexpressivos aos shows de dublagens, ao repertório musical e à atmosfera melodramática dos sentimentos exacerbados. A montagem ganha ímpeto em algumas cenas, mas se retrai, na maioria delas, por emaranhar solidariedade com situações selecionadas pela ótica da imutabilidade. O texto reafirma o fotográfico, não avançando em quadros menos posados e que ampliem o alcance da visão para além de contornos mais ambiciosos. A carta da mãe ao filho adquire caráter emotivamente pessoal, enquanto canções como “Geni e o zepellin”, de Chico Buarque e “Três travestis”, de Caetano Veloso ou ainda a paródia de Maria Betânia, se tornam reiterativas para  materializar a complexidade de um universo. A direção de Jezebel De Carli deste solo de Silvero Pereira, também responsável pela dramaturgia e que é acompanhado ao teclado por Rodrigo Apolinário, atribui ao ator a multiplicidade de marcas, trocas de figurino e de adereços do palco. É um esforço, ainda que rigorosamente desenhado, que deixa sequelas na limpeza da interpretação. O cantor se projeta melhor do que o ator, que administra os tempos de mudança de maquiagem e controle da luz, do ajuste do microfone e das projeções. A intensidade com que Silvero se entrega a tantas e tão exigentes tarefas, não obscurece o seu sincero e empenhado protesto contra  atos desumanos.