Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (19/8/2015)
Crítica/ “Mantenha
fora do alcance do bebê”
A adoção de um mundo ameaçador |
No texto de Silvia Gomez, o absurdo da realidade
é exposto em sua lógica desordenada. A candidata à adoção de uma criança
desencadeia em conversa com a assistente social suas improváveis razões para
conseguir levar um bebê para casa. De um lado, a burocrata com suas ponderações
e códigos de conduta, de outro, a postulante à maternidade desfiando lista de obrigações
e argumentos, ambas observadas por representante, aparentemente domesticado, de
um bando de lobos. A presença do marido, solicitada para contornar a situação,
desvenda o obscuro e ilumina o desfecho. Os papéis sociais estão estabelecidos,
e cada um desempenha suas funções como parte de um quadro em decomposição, no
qual linguagem e comportamento estão nivelados por uma ordem comum. Na máquina
coletiva de triturar as individualidades, os sentimentos se desestabilizam e
são engolidos pela uniformização, que descaracteriza e por emoções
desestabilizadas. Adotar um bebê desvenda a dor de uma perda e desmascara falsos
desejos criados por necessidades impostas. A narrativa com diálogos afiados e atmosfera
surreal, recorre a signos da dramaturgia do absurdo na tentativa de acentuar a
padronização da natureza animal dos instintos. Um tanto marcada por essa
influência, a autora mineira de 37 anos, expande com alguma originalidade e domínio
da escrita os limites das referências, desfocando a veracidade num relato
compacto e levemente provocativo. O diretor Eric Lenate lança tensão dissimulada
pelo clima de estranhamento, capturada pelos gradativos sinais que as palavras
apontam e a ambientação confronta. A brancura do cenário em movimento, a crueza
dos adereços, o colorido da iluminação e a sonorização ameaçadora, abrem espaço
ao supra-real e ao desencontro da insensatez com a banalização. A montagem
mantém a plateia em permanente
inquietude, na expectativa do que virá em seguida, sintonizada no fluxo das
motivações intrigantes dos personagens. O diretor acompanha com humor e
desalento irônicos, e ao mesmo ritmo ágil da autora, o desenrolar da trama sobre
uma sociedade sem perspectivas, assolada pela dança dos lobos. A primeira e a
última cenas sintetizam e adensam com
força dramática, a imagem desoladora da vida normatizada. Diego Dac empresta o
corpo à coreografia mascarada de uma fera sempre rondando e pronta ao ataque.
Jorge Emil confere maior peso ao personagem circunstancial do marido. Anapaula
Csernik em interpretação de conotação corporal, desenha a assistente social em
mímica crítica à palavra burocrática. Débora Falabella demonstra segurança na
apropriação do delirante esfacelamento verbal da mulher, devastada pelo choro
de bebês e em alerta pela proximidade da animalidade imprevisível.