Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (5/8/2015)
Crítica/ “Caranguejo
Overdrive”
Um homem,
catador de caranguejo e soldado na guerra do Paraguai, de volta ao Rio,
encontra a cidade repleta de obras. Sem reconhecê-la por conta de tantas
mudanças urbanísticas e da loucura que trouxe das batalhas, busca trabalho na
construção do Canal do Mangue. Vagando pela miséria a que a origem o condenou e
pela guerra que o enlouqueceu, revê a cidade, mergulhando na lama da geografia
da fome em busca da fertilidade primitiva das raízes e da pulsação de vidas que
chafurdam no mangue. No percurso deste homem condenado à animalidade pela
destruição à sua volta, resta incorporar a forma de caranguejo, força vital e
absoluta no subterrâneo de zonas enlameadas. Mais do que metáforas, o texto de
Pedro Kosovski e a direção de Marco André Nunes, indissociáveis como unidade de
concepção, aproximam épocas (séculos XIX e XXI) pela ensaística de Josué de Castro, a sonoridade do Manguebeat de Chico Science e a poética soterrada da alma
da cidade. O que torna provocante essa mistura de performance, dramaturgia e
música são as conexões cênicas que estabelece com cada um desses elementos em descontínuas
e simbólicas imagens. Não há organicidade dramática ou continuidade narrativa que
balize a percepção, mas diversidade de recursos que desviam o olhar para a
simultaneidade de ações e a multiplicidade da palavra. Caranguejos vivos,
presos em uma gaiola, se contrapõem à presença de um ator coberto de lama,
representando a figura ampliada do crustáceo humanizado. A velocidade com que a
história carioca das últimas décadas é contada em espanhol acelera os
fragmentos sonoros captados na mesma intensidade do absurdo dos fatos narrados.
Num fluxo, de tempos e formas, não se dá trégua à estimulação sensorial. Da
exposição direta de um ator falando ao microfone ao desenho traçado diretamente
nos corpos, o espaço de ver e ouvir se decompõe em cenas estilhaçadas, capturadas
como possibilidades de sensações visuais e auditivas intensas. A sensibilização
é o meio através do qual, autor e diretor interpretam referências histórias,
apropriam-se do jogo político e se relacionam com o contemporâneo. A
brutalidade da pobreza de ontem reverbera nas citações a de hoje em diálogo
entrecortado e intermitente entre estéticas contrastadas e falências sociais. A
sintonia de Pedro Kosovski e Marco André Nunes se reflete no elenco e na
criação técnica, coletivamente integrados e coesos. A direção musical de Felipe
Storino, a iluminação de Renato Machado e a instalação de Marco André Nunes são
corresponsáveis pelas experimentações e eficiência de um espetáculo que provoca
por suas virtudes construtivas. Alex Nader tem presença mais secundária, ainda
que vigorosamente atuante. Assim como imprime no corpo carapaça animal, Eduardo
Speroni se protege no físico da sua menor vivência cênica. Felipe Marques com domínio
e controle corporal faz da figura estática e coberta de lama de um caranguejo,
síntese visual e dramática do homem que foi ou será animal. Matheus Macena,
personagem em torno do qual gravita a montagem, dispõe sua voz impostada e
corpo treinado à miserabilidade do soldado perdido na cidade na qual nunca teve
lugar. Carolina Virguez contrabalança
com o humor de suas intervenções, tanto como a professora que espalha clichês da
academia como ao contar versão improvisada
da vida carioca, a crueza do tempo contínuo de mundos imutáveis.