sábado, 29 de julho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/7/2017)

Crítica/ “Estes fantasmas!”   

Fantasmas que assombram a farsa

A farsa de Eduardo de Filippo, que trata fantasmagoria como recurso de humor, é bem diferente das suas comédias napolitanas vividas em ambientes domésticos. O eixo cômico se desloca para um certo tom amargo ao qual personagem central se entrega para manter a relação com a mulher que o traí. Ao alugar velha casa, para transformá-la em pequeno hotel, é informado, por empregado esperto, de que os cômodos são tomados por assombrados acontecimentos. Os sinais dessas presenças estranhas  aparecem, em coincidentes situações, que o novo inquilino não deixa escapar, se aproveitando para lucrar, material e afetivamente de cada uma delas. As características farsescas de uma trama de vaudeville, escondem as pretensões do autor de apoiar a narrativa em textura mais encorpada. Pascoal será ingênuo ou aproveitador? A quem quer enganar? A si mesmo ou aos outros? A ambiguidade do personagem é de que trata de Filippo. Mas tantos anos depois da estreia, em 1946, as dubiedades ou malandrices de um homem apaixonado parecerão tão somente aquilo que expõe. Nenhuma camada para além da textura das situações. A direção de Sergio Módena se manteve no plano da ação cômica, sem explorar quaisquer apontamentos que, eventualmente, o texto pudesse insinuar. O vaudeville explícito prevalece à farsa-cabeça. Ainda assim, o diretor não sintoniza a frequência ágil do gênero à comicidade de resultado. O riso é provocado e funciona muitas vezes, ainda que a atmosfera geral do humor não esteja muito clara em cena. Em parte, pela necessidade de que haja bem orquestrado jogo de atuações, que mantenha o ritmo nas entradas e saídas, e intensa contracena com a tipologia das caracterizações. A cenografia austera e solene de Doris Rollemebrg serve à imagem de decadência de antiga mansão. A iluminação de Tomás Ribas complementa esse ar arruinado. O figurino de Mauro Leite comenta como bom humor as roupas femininas. A registrar a direção musical de Marcelo Alonso Neves. No elenco, Rodrigo Salvadoretti e Celso Andre  adotam linha caricatural. Gustavo Wabner explora com timidez as aparições do amante. Ana Velloso é uma esposa descolorida. Stella Freitas tira melhor partido da sua divertida aparição. Alexandre Lino, cujo personagem apresenta o entrecho, é quem melhor lança e sustenta o caráter duvidoso dos comportamentos. Thelmo Fernandes, mais contido em seu temperamento popular de humor, aproxima Pascoal da sua sonsa e ardilosa natureza misteriosa.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/7/2017)

Crítica/ “Entonces bailemos”
Ciranda de casais em luta no colchão


No arranjo dramático do autor e diretor argentino Martín Flores Cárdenas para “Entonces bailemos” estão reunidos textos curtos, um tanto soltos, quase independentes, sobre violências nas relações amorosas. Cada uma das cenas é anunciada pelo ator que a viverá em seguida, e introduzida ainda por cantor-cowboy, que preenche o tempo das passagens. No cenário reduzido a um colchão e à frieza de um dispositivo de iluminação, o elenco se distribui por espaço emocional de exposição física dos conflitos, diante do qual, o autor parece querer nos dizer que só resta dançar. Mas Cárdenas mostra que tem ambições mais amplas do que a sucessão de pequenas histórias de fins trágicos ou de agressões verbais. Aparentemente, procura na interseção de atos de brutalidade com gestos de amor, os limites das contradições dos sentimentos. É o que demonstra, com parcialidade, a montagem que na sua costura narrativa deixa frouxa a suposta conceituação dos choques, projetando os embates como luta corporal de efeitos de estranhamento. Na há construção de subjetividade, apenas situações que se sustentam na superfície do depoimento e em escala descritiva. A direção, por identidade indissolúvel com a autoria, acentua a contundência de fachada, encobrindo o pretendido alcance da dramaturgia. A concentração dos quatro atores no colchão, sem presença ativa quando um deles protagoniza o seu monólogo, reforça a fragilidade da escrita. A participação do cantor country, também evidencia o descompasso entre a cena e o seu desdobramento. Na contramão dessa imobilidade, a coreografia brutalizada sufoca a suposta verificação da “violência dos opostos”. Ricco Viana, que participa como músico convidado, desempenha com segurança de instrumentista e domínio de cantor, a figura do cowboy perdido em território estranho. Elisa Pinheiro, quando domestica o seu timbre ácido de voz, interpreta com suave crueldade. Marina Vianna imprime impulsos de corpo e voz em atuação de alta disponibilidade. Leonardo Netto em movimentos menos explícitos, busca ambiguidades. Gustavo Falcão é mais direto em suas intervenções.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/7/2017)

Crítica/ “Solteira, casada, viúva, divorciada”
Estados civis se multiplicam em uma atriz

A atriz Stella Maria Rodrigues se multiplica em quatro personagens de cada um dos estados civis que o título das peças curtas, próximas a esquetes, reúne em espetáculo único. A solteira, de Noemi Marinho, a casada, de Luiz Arthur Nunes, a divorciada, de Regiana Antonini e a  viúva, de Maria Adelaide Amaral, dividem suas dificuldades de relacionamento com os homens, sem maiores pretensões, senão aquelas que possam estabelecer algum atrativo com a plateia. No quarteto de monólogos, pequenas observações sobre o comportamento feminino se distribuem em toques aos maus costumes e as diferenças com o masculino. A historieta da solteira, voluntária de um serviço de ajuda a solitários, aponta para a comédia com pitada dramática, logo reconduzida à trilha do comentário de senso comum. A exposição da casada apela, sem restrições, ao humor caricatural. O texto sobre a viúva é pouco mais do que o convencional, desenvolvido com carpintaria. A divorciada é quem ameaça provocar o riso. Consegue poucos. A voltagem cênica de textos tão despretensiosos é possível pelo diálogo fluente entre o carisma da intérprete e firmeza da direção. Alexandre Contini mostra habilidade na avaliação das possibilidades de explorar as características da atriz, e o alcance restrito dos textos. O diretor conduz a protagonista a distender, aos limites de sua versatilidade, o domínio do humor, e a individualização dos tipos. Mesmo quando os quadros caem de interesse e patinam em repetições, o ritmo não é quebrado inteiramente, em parte pela expectativa da próxima condição conjugal e da curiosidade de como o papel será desempenhado. Stella Maria Rodrigues é uma atriz de recursos, com bom currículo de cantora e de participação em musicais, que nesta coletânea de situações, dribla a padronização e os extremos em atuação prudente. Com inteligência de palco bem medida, avança no arco interpretativo com comedida doses de caricatura, comicidade popular e do desenho gestual. Mas essa mensuração expõe o temperamento contido de Stella em cena, o que exigiria, para melhor caracterizar a tipologia das mulheres, investimento em identidades mais performáticas.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (12/7/2017)

Crítica/ “Fauna”
Ambições frustradas de metalinguagem

Qualquer que tenha sido a pretensão da argentina Romina Paula com a “Fauna”, suas ideias se perderam na confusa e sobrecarregada narrativa. São propostas, de tantas e tão variadas segmentações, que o núcleo de personagens se dispersa em traços esboçados e na trama que ambiciona discutir relações artísticas. Cineasta e jovem atriz procuram desvendar, para escrever roteiro a ser filmado, a vida de uma mulher, cujos filhos ambíguos parecem marcados pela selvagem personalidade materna. Além de cavalgar pelos campos, e de se vestir com roupas masculinas, essa figura vai sendo reconstruída através dos ensaios para a produção do filme, que inclui o estranho grupo como ator. A partir da falsa situação inicial, os conflitos, entre esse peculiar projeto cinematográfico e as hesitantes motivações sexuais de cada um, são impulsionados por citações literárias e, possivelmente, é duvidoso afirmar, pelo uso da representação como metalinguagem. As intenções, em desacordo com as cenas, criam um estranhamento, que deve ser creditado, tão somente, à inconsistência dramática. O primeiro deles, é a leitura, sem razão aparente, a não a de adorno beletrista, de texto do poeta Rainer Maria Rilke. A que se seguem, desejos intempestivos e mudanças temperamentais inexplicáveis. A direção em dupla de Erika Mader e Marcelo Grabowsky colabora, com o empenho  de quem acredita no material disponível, não se distanciando o bastante para perceber os problemas da dramaturgia. A encenação reproduz as inabilidades de um entrecho que se perde em indefinições e submerge em artificialismo. A montagem segue a mesma linha indistinta que move a ação, tornando ainda mais vagas as atitudes dos personagens e inexpressivas suas motivações. No cenário rural de Fernando Mello da Costa, os quatro atores se movimentam em circuito em que os gestos exteriorizam emoções postiças. Eduardo Moscovis se mantém equidistante e alheio ao já mal construído cineasta. Kelzy Ecard procura dar alguma consistência à filha implausível. Erom Cordeiro tenta marcar sua atuação, tanto nas investidas sensuais, quanto na truculência do recluso. Erika Mader se confunde com a atriz iniciante que interpreta.

sábado, 8 de julho de 2017

Temporada 2017

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (8/7/2017)

Crítica/ “A guerra não tem rosto de mulher”
A guerra sob a ótica de um balé corporal feminino


O livro “A guerra não tem nome de mulher”, da escritora bielorussa Svetlana Alexievich, traz para o campo de batalha, depoimentos femininos que extravasam a associação masculina às frentes de batalha. São relatos que se debruçam sobre diferentes perspectivas, de testemunhos factuais a emotivas descrições, na captação das pequenezas da grande destruição. Para além dos papéis a elas atribuídos nas escaramuças, de enfermeiras a funções na retaguarda, Svetlana destaca a vontade de pegar em armas e participar do que, a princípio, consideravam dever. A percepção dos horrores e das semelhanças humanas entre vencidos e derrotados, as conduzem a rastrear, com olhar dos sentimentos, os despojos que as sobreviventes veem pelo caminho da terra arrasada. A dramaturgia coletiva das atrizes Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscilla Rozenbaum, e do diretor Marcello Bosschar  selecionou, em meio a múltipla oralidade do livro, o que melhor se traduziria em fala cênica. Na adaptação teatral, foram retiradas quaisquer referências históricas para que sobressaíssem a comoção provocada pela primeiro tiro certeiro, a desesperada maternidade assassina e os cuidados com a aparência resistentes às adversidades. Na escrita, a pluralidade de vozes é a razão mesma da estrutura narrativa, enquanto a transposição para o palco procura nas alternâncias de climas unidade tonal inalcançável. A preocupação em encontrar um estilo mais solto, sem apoio cenográfico e com balé corporal, deixa em plano secundário visão mais sólida do pano de fundo que provoca os discursos das mulheres. A guerra está distante, até mesmo quando ditada pela emoção, como se a palavra perdesse a força ao ser reproduzida sem a carga de sua matriz reflexiva. O trio de atrizes percorre as diversas locuções com jogo cênico ajustado.