domingo, 30 de maio de 2021

Publicado no site |taú Cultural em abril de 2021. 


Anotações sobre a crítica teatral jornalística

Nada parecerá mais improvável do que as ligações do jornalismo com o teatro, num país em que um só aportaria no Brasil no século 19, e o outro encontraria a sua expressão moderna apenas em meados do século 20. O tempo, imperioso cotidiano do fato nas folhas, e volátil no registro em palco, manteve paralelismo etário que sustenta a convivência desde o surgimento da imprensa nacional com as primeiras manifestações teatrais sistematizadas. No Brasil dos anos 1800, os jornais reproduziam matriz importada com fragilidade impressa nos seus meios artesanais e na precariedade numérica de seus leitores. Os teatros, com pouco mais do que raras incursões de companhias francesas e de algumas portuguesas, tinham na plateia provinciana e rarefeita, aglomerado de espectadores que se reunia em celebração social. A partir da terceira década do século, os anais da imprensa registram o nome do primeiro crítico teatral do país (Justiniano  José da Rocha), e começa a se esboçar algum desenho de produção nativa, tanto de companhias, como de autores. No rastro desse panorama iniciante, os jornais incorporam intelectuais dispostos ao exercício crítico, numa prática mais voltada ao literário, do que à matéria cênica. Entre esses críticos pioneiros, Machado de Assis foi um atento observador por exatos 20 anos, assíduo nas plateias das intermitentes temporadas. 

Machado de Assis (século XIX): Observador de empresa arriscada

“Escrever crítica e crítica de teatro não é só uma tarefa difícil, é também uma empresa arriscada. A razão é simples. No dia em que a pena, fiel ao preceito da censura, toca um ponto negro e olvida por momentos a estrofe laudatória, as inimizades levantam-se de envolta com as calúnias. Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem a compaixão se deu algumas migalhas de aplauso. Esta perspectiva poderia fazer-me recuar ao tomar a pena do folhetim dramático, se eu não colocasse acima dessas misérias humanas a minha consciência e o meu dever. Sei que vou entrar numa tarefa onerosa; sei-o, porque conheço o nosso teatro, porque o tenho estudado materialmente; mas se existe uma recompensa para a verdade  dou-me por pago das pedras que encontrar no caminho. (...) Estes preceitos, que estabeleço como norma do meu proceder, são um resultado das minhas ideias sobre a imprensa, e de há muito que condeno os ouropéis da letra redonda, assim como as intrigas mesquinhas, em virtude de muita gente subscreve juízos menos exatos e menos de acordo com a consciência própria.” 

(Trechos da crítica de Machado, no Diário do Rio de Janeiro. de “Mãe”, de José de Alencar, em 29 de março de 1860)

Vestido de Noiva: Os Comediantes : Premissas de profissionalização (1943)

Nas primeiras quatro décadas da século XX, a imprensa da então Capital Federal mantinha com o teatro  a mesma e esporádica frequência com que as companhias de fora chegavam por aqui, e os incipientes grupos locais se aglutinavam em torno de atuações grandiloquentes com sotaque lusitano. Críticos haviam, uns poucos expunham suas leituras de autores franceses e referências clássicas em aluguel beletrista das representações teatrais. Os anos 1940 anunciaram mudanças decisivas, que seriam consolidadas nas reformas editorais e gráficas dos jornais, e na sintonia do teatro com a “profissionalização”. É o momento em que Os Comediantes trazem “as novidades” de “Vestido de Noiva”, o Teatro Brasileiro de Comédia inicia seu trajeto empresarial-artístico, a Escola de Arte Dramática experimenta didáticas, e surge geração de atores que se transformaria em elenco com validade histórica. Não por acaso, um nome está associado, direta ou indiretamente, a esses marcos da cena brasileira: Décio de Almeida Prado, que estreava a moderna crítica teatral. Por 22 anos (até 1968), assinou coluna em O Estado de São Paulo, conjugando erudição com linguagem clara e apurada, dirigindo-se em equilibrada dosagem à classe artística e ao leitor de jornal. Essencialmente formador, participou como “ativista” na renovação da análise crítica, estabelecendo padrões da escrita e alianças solidárias com os criticados, apoiados na coerência intelectual e na ética profissional, Décio desarmou o compadrio de alguns críticos/colunistas de então, que se tornavam apenas apêndices/divulgadores do objeto de sua avaliação.

A Dama das Camélias : TBC: O novo diante do amador (1951)

“(O crítico é) alguém que tem que pensar depressa – às vezes nos poucos minutos que medeiam o fim do espetáculo e o início da impressão do jornal – sobre peças, atores e encenadores que nem sempre passaram em julgado. Um profissional que tem de separar o joio do trigo, adivinhar a semente que germinará numa operação quase instantânea, sob a pressão de modismos passageiros, de ondas de entusiasmo ou de descrédito, tanto suas, estritamente pessoais, quanto da comunidade teatral a que pertence. (...) Não que por causa disto se deva considerar verdades eternas cada frase consignada pelo crítico no papel. Ao contrário, acredito, que sua apreciação não representa mais do que uma opinião entre muitas outras. (...) Não existe, portanto, essa figura mítica: o crítico modelo. O que pode e deveria haver em cada centro teatral é um elenco crítico bem distribuído, bem equilibrado, comportando várias tendências estéticas e vários tipos de personalidade. (...) Nessa república platônica dos nossos sonhos só estariam excluídos da profissão os ignorantes, os de má fé, os insensíveis à arte, os tolos, os invejosos de êxitos alheios. A severidade, por si mesma, não contaria pontos a favor ou contra. Saber admirar, ao contrário do que frequentemente se pensa, não é nem mais nem menos difícil do que saber censurar. 

(Trechos do prefácio de Décio de Almeida Prado de seu livro “Exercício Findo”  de críticas de 1964 a 1968)

Os anos 1960 fixaram os cadernos de cultura como parte, diária e permanente, do corpo editorial dos maiores jornais do Rio e São Paulo. Os críticos de então – entre eles, Sábato Magaldi no Jornal da Tarde e O Estado de São Paulo, e Yan Michalski no Jornal do Brasil – se incorporaram ao quadro de funcionários das empresas, com semelhantes garantias dos demais jornalistas da redação. Caracteriza-se a função do “crítico profissional” e a prática regular publicações, registrando temporadas cada vez com maior número de espetáculos e diversidade de tendências. Oficina, Teatro dos Sete, Arena, Companhia Cacilda Becker estavam em cartaz seguidamente, enquanto autores como Plínio Marcos, Dias Gomes, Jorge Andrade desenhavam, com traços definidores, suas dramaturgias. Jovens diretores (José Celso Martinez Correia, Augusto Boal, Flavio Rangel) definiam rumos de futuras carreiras. Coparticipante das mudanças e de tantas e instigantes propostas de renovação, o crítico exerce a sua profissionalização com independência que exige o jornalismo, e  apoio teórico que informa o seu pensamento. A disponibilidade de espaço se refletia na frequência com que críticas e artigos eram editados (às vezes, mais de três por semana) e no imediatismo das estreias. Antes da crítica mais extensa, que poderia se alongar por duas ou mais edições sobre o mesmo espetáculo, havia a Primeira Crítica, impressões iniciais disponíveis ao leitor já na manhã seguinte à estreia. As crescentes investidas da censura eram denunciadas por críticos, a postos a apontar arbitrariedades e ressaltar o ridículo de várias sanções.   

O Rei da Vela: Oficina: À luz dos rompimentos (1967)

“ Não é fácil conceituar a função da crítica. Um espetáculo pode, perfeitamente, preencher seus objetivos, realizando-se como arte e atingindo o público, sem receber um só comentário da imprensa. Acresce que, se examinarmos o papel desempenhado pela crítica através dos tempos, seremos coagidos a concluir que suas manifestações representam uma história de equívocos. (...) O crítico precisa ser sensível às mutações contínuas da realidade teatral. (...) precisa detectar as tendências incipientes, protege-las quando em pleno processo de afirmação e denunciar seus descaminhos, repetições e depauperamento. (...) Alega-se, às vezes, que haveria um prazer sádico em destruir, quando é muito difícil a construção. Não creio que os críticos padeçam desse mal. Na minha longa carreira, sempre fiz restrições com extremo desgosto, sentindo-me contente ao elogiar.  Porque o crítico, à semelhança de qualquer espectador , gosta de ver um bom espetáculo, e sente perdida a noite, se não aproveitou nada do que viu. Até para o deleite pessoal, o crítico encara o seu papel como o de parceiro do artista criador, irmanados na permanente construção do teatro.”

(Trechos dos artigo “A Função da Crítica Teatral”, de Sábato Magaldi no livro “Depois do Espetáculo”) 

A década de 1970 começou em 1968, não marcada pela convenção temporal, mas pelo calendário político, já que este foi o ano da promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5). Desde então, imprensa e teatro e toda malha social do país, ficaram sujeitos à ação repressora da censura, determinando o que poderia ser lido, visto e vivido. Circunscritos aos limites predatórios da livre expressão, os jornais e os palcos estabeleciam meios transversos para denunciar o arbítrio censório. Receitas culinárias ocupavam espaços de textos censuradas e metáforas e elipses tentavam levantar a cortina que encobria o cenário real. Jornalistas, críticos, autores criavam malabarismos verbais para deixar visível, ao menos em parte, aquilo que a legislação pretendia oculta. Faziam-se alusões, desbravam-se atalhos, driblavam-se barreiras, procurando manter a clareza e  o compromisso com o rigor da reflexão. 

“Permitam-me , a propósito, um depoimento pessoal, talvez ilustrativo num certo sentido. Venho exercendo a crítica há 15 anos. Estatisticamente, é provável que estes 15 anos representem muito mais da metade de duração total da minha carreira. Analisando retrospectivamente esses anos de trabalho, não posso negar a sensação, resultante da constatação do enorme empobrecimento que o meu trabalho sofreu em decorrência das limitações que os censores impuseram ao repertório que me era dado ver e analisar. Para proteger-me contra aquilo que na sua unilateral opinião poderia ser perigosa para a minha formação moral e ideológica, os censores impediram-me de testar minha capacidade crítica contra o pano de fundo de toda uma série de obras ótimas ou péssimas, que só poderiam ter aguçado essa capacidade; negaram-me a possibilidade de contato com experiências e tendências que só poderiam ter ampliado a minha visão do fenômeno teatral; condenaram-me a milhares de horas assistindo a um teatro emasculado, de voo controlado, e outras tantas horas escrevendo sobre esse teatro. É claro que só posso considerar essa interferência como grave handicap na minha formação profissional, com o empobrecimento da minha carreira, consequentemente, com irrecuperável prejuízo à minha realização como indivíduo, e em última análise como diminuição dos serviços que eu poderia  potencialmente prestado à coletividade.” 

(Trecho do artigo “Censura, um mau negócio para todos” , de Yan Michalski  no livro “Reflexões sobre o teatro brasileiro no século XX)

Trilogia Kafka: Gerald Thomas : Questões estéticas sob o peso do consumo (1988).

O fim da censura (oficialmente em 1985) encontrou a imprensa e o teatro em fase de ajustamento de protocolos. O processo de redemocratização ampliava o debate político e integrava questões cênicas às mudanças estéticas e de produção dos anos 80 e 90. Os segundos cadernos se voltaram para a cultura sob a perspectiva do consumo, setorizando o espaço crítico como área de opinião indicativa. Em fases alternadas, ao sabor da troca de editores, a análise crítica ganhava maior ou menor destaque, convivendo com   as simplistas e redutoras estrelinhas classificatórias. Os jornais tinham tiragens expressivas e leitores com expectativa variável, mas aparentemente conduzidos pela, maior ou menor, contundência no estilo de cada crítico. A cena teatral se reagrupava em torno de novos encenadores (Gerald Thomas, Gabriel Villela, Felipe Hirsch, Bia Lessa) e ordenação produtiva, via lei de fomento. Comédias e musicais estavam na linha de frente das temporadas, infladas com quantidade de montagens superior à realidade do mercado. Os críticos mais atuantes, ligados às empresas jornalísticas, exerciam suas atribuições de modo extensivo, com cobertura de grande parte de espetáculos inexpressivos e desprovidos de qualquer interesse. A crítica caía na rotina da agenda de estreias, surpreendendo o leitor ao ganhar espaço e se aprofundar sobre encenações de ruptura ou linguagens de códigos menos convencionais, reagindo com recusa ao espetáculo e ao crítico-jornalista. Os últimos 20 anos agravariam a profunda crise, econômica e identitária da imprensa. O fechamento de jornais e a avassaladora primazia da tecnologia digital, redistribuiu, nesses anos 2000, a informação, fragmentando o interesse do leitor, acelerando, de modo abissal, a velocidade na sua recepção. Com plateias mais restritas, acomodado a sistema de produção de mão única e hesitante diante de possibilidades   investigativas de estéticas cênicas, o teatro converge para  ponto de inflexão. O crítico sobrevive nos poucos jornais e a rarefeitos leitores. Experimenta-se na plataforma digital com conteúdos encorpados para capturar público seletivo. Em qualquer meio _ o convencional em fase restritiva e o emergente em período de teste –, o diálogo entre produção crítica e amplitude receptiva do espectador está fundamentado – e talvez esta seja a única certeza _  na inquestionável permanência da atividade teatral.

Estado de Sítio : Gabriel Vilella: Em permanência de uma arte inesgotável (2018)


“A efemeridade do ato teatral não compromete a sua eternização. Total, quando se completa na cena e se projeta na plateia, se faz permanente nos traços que deixa em cada um dos que o constroem e assistem a ele. É fugaz na dificuldade de se reproduzir como registro histórico, visual ou jornalístico. Estreitamente relacionado a seu tempo e amplo na revitalização milenar de seus meios expressivos, o ato teatral se deixa capturar pelas sensibilidades do momento, pelas emoções do instante e pela longevidade do pensamento. Reviver no presente as progressões do passado é da natureza da criação, que extrapola da documentação dramatúrgica para a contemporaneidade da cena. Acompanhar esse avanço é assistir à invenção em estado inquietante. Ficar cara a cara com a experiência humana em sua beleza e sordidez, percorrer memórias com alegria e melancolia, ter a inteligência provocada pelo desafio do desconhecido e a ruptura com o já sabido, num exercício infindo de se descobrir a cada ida ao teatro. O tempo da cena é finito; os sentimentos que provoca são infinitos. Tentar capturá-los em palavras, divulgá-los como atividade profissional, dispor-se a vive-los como atos generosamente oferecidos são práticas de uma vida de espectador que se confundem com a impermanência de uma arte inesgotável na mutabilidade com que enfrenta a passagem dos séculos. Um curto período da atividade de crítica teatral no Jornal do Brasil  (1982-2010) expõe a tentativa de me debruçar sobre o palco como vivência – reflexiva, amorosa, definitiva. Em tão pouco tempo, é possível reter somente os fragmentos de uma experiência artística que nunca se desvinculou da vida real. É tentar reter a extensão da sua complexidade técnica e o prazer de usufruir de tudo o que cabe no humano. E, no teatro, o humano se mostra na sua totalidade.”

(“A Permanência do Efêmero”, abertura do livro “Et Ali”, seleção de crítica de Macksen Luiz)