quinta-feira, 27 de julho de 2023

Oficina do Zé

 


O número 520 da Rua Jaceguai, no bairro do Bexiga, em São Paulo, é sede do grupo Oficina, desde da década de1960, quando o jovem coletivo teatral, liderado, desde então, e até a sua morte neste 2023, por José Celso  Martinez Corrêa se instalou. Num cenário urbano inóspito, de vizinhança de sobradinhos decadentes e fachada acanhada, o Oficina se impõe como endereço de referência para a cena brasileira por um artífice de obras únicas, linguagens interpostas, ruídos dissonantes, voz autoral, e rituais afro-dionisíacos. No terreno em declive, a construção acompanha a extensa profundidade da área, com plateia em dois planos laterais, oferecendo visão para o palco-rua-passarela, em via de mão dupla para público e atores. Mas de início não era assim. Quando o grupo ocupou a precária construção da época, o Zé, como sempre foi chamado por seu elenco, já experimentava o melhor aproveitamento do complicado espaço. Assim como investigava suas habilidades com repertório que incluía tentativas dramatúrgicas (“0 Vento Forte para um Papagaio Subir” e “A Incubadeira”) e outros tantos autores (dos americanos Clifford Oddets e Tennesee Williams aos europeus Max Frisch e Valentin Kataev), o espaço adquiria o formato de bigorna, logotipo impresso na fachada e imagem do “artesanato” produzido no seu interior. Foi sob esta bigorna que o iniciante encenador esquenta o malho para forjar os elementos que ganhariam, em seis décadas de moldes abrasivos, o polimento de seu temperamento criativo de extensão única. 

A sua primeira direção, “Pequenos Burgueses”, do russo Máximo Gorki, apontava para um rumo que parecia leva-lo ao teatro de viés político-social, mas solidamente baseado em técnica stanislaviana. Nos termos em que foi concebido, o espetáculo de 1963 pode ser considerado “clássico” do realismo, nos quais o detalhamento da formalização dramática, denotava domínio cênico que não se supunha em diretor tão jovem. Num interregno de quarto anos, com um incêndio no meio, José Celso circulou por aparente vazio produtivo, na tentativa de manter o espaço vivo, mesmo que em pulsão enfraquecida. De comédia descartável às remontagens requentadas, nada indicava que algo estava se gestando acima dos escombros das chamas do prédio e do encenador sendo reconstruindo. 
"Rei da Vela"

Ao estrear “O Rei da Vela”, em 1967, elos estéticos se unem de modo surpreendente, enquanto linguagens artísticas são rompidas numa improvável unificação. O que parecia impossível (encenar o texto de Oswald de Andrade), determina abusiva intervenção criativa, sem roubar a integridade do original. Revivê-lo e dar-lhe alma cênica, foi plenamente conseguido ao sovar os padrões circulantes, carnavalizando a nacionalidade e expondo o alcance inovador da direção. A repercussão de “O Rei da Vela” atordoou a crítica, instigou a intelectualidade (o movimento tropicalista na música se originou no teatro e se consolidou na academia), e deixou confusa a plateia, Seguiu-se quase uma década de alternância do espetáculo em cena. 

Em 1968, Zé Celso é convidado por empresário carioca para dirigir “Roda Viva”, texto incipiente do jovem Chico Buarque, que ocupa o Teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Ao frágil material disponível, emprestaria vigor cênico na nudez e na explodida intervenção de um coro de atores,  recém saídos da escola de teatro. A esse despudor em tempos ditatoriais, acrescentaria uma bandeja com carne crua, servida a uma plateia que esperava encontrar o mesmo lirismo do autor de “A Banda”, vencedora de recente festival de música. A reação que no Rio foi de perplexidade e de olhar atento dos órgãos policiais, em São Paulo foi de ação brutal e violenta contra o espetáculo. De volta ao palco da Jaceguai, o diretor artístico, líder, condutor dos rumos a perseguir, se concentra em Bertold Brecht, de quem encenaria “Galileu Galilei” (1968) e “Na Selva das Cidades” (1969).  Ainda em busca de repertório que combinasse arte e política, partiu para uma certa iconoclastia brechtiana, terminado a abjuração de Galileu com os atores dançando twist ao som de Cely Campelo em “Banho de Lua”. Na “Selva das Cidades”, um ringue de luta delimitava a área de destruição completa da cenografia, rompendo, simbolicamente, as paredes do teatro, lançando o grupo para o espaço alargado de outras áreas investigativas. É quando viagem ao Brasil do Living Theater confunde-se com variadas viagens de auto-revelação do Oficina, que vagueiam por tentativas de vislumbrar horizontes para além da palavras: (“Utopia (Utopia dos Trópicos)” (1971) e “Gracias, Señor” (1972). Reduzido a um coro desgarrado de atores-acólitos, pelo último remanescente do “antigo” grupo, Renato Borghi um dos fundadores, abandona o coletivo, selando o fim de um tempo. Para conservadores, sem parâmetros para avaliar o que propunha aquele bando de “desbundados”, era o derradeiro suspiro de sanidade do diretor incontrolável. 

Tudo indicava que alguma explosão aconteceria, mas nada indicava seu rumo. Os filamentos dessa cena explodida, vista sob  quaisquer padrões anteriores, mostravam apenas que as rupturas pareciam inevitáveis, que haviam forças geradoras de algo a ser concebido, reveladas somente uma década depois. “As Três Irmãs” (1972) deixava entrever que a inquietude do diretor, a coletivização criativa e o caráter aparentemente anárquico, estavam mantidos pela herança de técnicas stanislsvianas e no manuseio ainda obscuro de técnicas sem catalogação. O Oficina estava vivo, mesmo sem futuro aparente. Zé Celso foi preso em 1974, saiu do país, esteve em Portugal, filmou em Moçambique, e voltou quatro anos depois. Um tanto perdido – confessou a alguns diretores suas dúvidas sobre como conduziria a sua oficina teatral. Nesta volta, cheia de perguntas,  retomou com  “Pequenos Burgueses” (1990) o contato com o palco do Bexiga, e um ano depois montaria “As Boas”, tradução “zécelsiana” de “Les Bonnes”, de Jean Genet. Nas ruidosas conceituações tão próprias ao diretor, nova nomenclatura foi estabelecida para abrigar o que estava sendo gestado em surdina nos bastidores do terreno-terreiro a ser construído . A partir de “Ham-let” (1993), o Oficina passaria a ser titulado de Uzyna Uzona. Shakespeare era submetido a maratona que se estendia por mais de cinco horas. Fatiado, servido em celebração ritualística, Hamlet se confundia com personagens de “As Boas” contracenando com Polônio, caracterizados com os mesmos figurinos e maquiagem de “O Rei da Vela”. Indicava o messianismo para conduzir a plateia a participar de ritos religiosos, comandado por um pregador em fúria demolidora, envolvido por “impureza” técnica, mas segura base formal.
"As Bacantes"

Em “As Bacantes” (1995), o tom processional e dionisíaco está ligado ao espaço físico, totalmente reconstruído pela arquiteta Lina Bo Bardi. Eurípedes fica exposto num espaço de representação de disputa entre forças retrógradas (que o diretor identifica com segmentos da sociedade brasileira) e libertárias (associadas à sexualidade e as drogas). Zé Celso estabelece esse confronto através de intermitente provocação, num jogo de opostos (o rito cênico carnavalizado pelo espetáculo) e em referências insuspeitas (na  marchinha carnavalesca  “Mamãe, eu quero” cantada pelo coro grego-brasileiro e no toque físico em algum espectador sorteado na plateia). “Cacilda” (1998), projeto antigo do Zé, foi escrito por sete anos e resultou em mil páginas de texto e tantas versões no palco. Cacilda Becker é menos retrato de atriz, e mais protagonista da história cultural do país. Investida de médium, “incorpora uma energia contida pelo coma cultural”. Metáfora do coma que antecipou a morte da atriz, a montagem em quatro versões e incontáveis horas cita o AI-5 e a Semana de Arte de 1922, e revela um Gogot em delírio como “um animal (minotauro) libertário.” Citações e analogias vão ao encontro da biografia teatral do autor-diretor, ampliadas pela narrativa orgiástica. Em processo convergente das montagens recentes e na radicalidade do exercício de atualização, José Celso corporifica com “Os Sertões”  (2002 a 2006) a sonoridade, barulhenta, provocativa, dissonante, única, de uma teatralidade desmedida. Somente uma “usyna” de operário tão aplicado imprimiria tanta “uzona” à obra de Euclides da Cunha. Tal como em “O Rei da Vela”, texto que não se imaginava encenável, a guerra de Canudos explode em escala épica, ora como ópera carnavalesca, ora como evocação afro-política-dionisíaca em rito cênico. A oficina que o Zé inventou, com a qual conviveu e se fundiu, manufaturando o seu teatro  e a própria vida, está fincada no prédio paulista, que um dia teve formato de bigorna, e em outro de passarela para um samba teatral inigualável.                 

domingo, 2 de julho de 2023

"A Cerimônia do Adeus"

Sérgio Britto e Natalia Thimberg, direção de Paulo Mamede (1987) 

No livro “A Cerimônia do Adeus”, Simone de Beauvoir registra os últimos dez anos de vida de Jean–Paul Sartre, em acerto de contas de convivência intensa. No texto de Mauro Rasi, o mesmo título adquire significado de acerto de contas consigo mesmo, A cerimônia dramatúrgica é o rito de passagem do jovem Juliano. De volta à cidade do interior paulista, de onde saiu com pouco mais de vinte anos, Juliano revive o cotidiano doméstico da mãe oprimida e limitada pela rotina e vivência provinciana, que à época, já se desenhava obscurantista no país. O descompasso existencial com o real, acirra no jovem o desejo difuso de rompimentos, de criar em plano delirante o que pela ação parece inalcançável. O personagem reinventa aquilo que hostiliza sua sensibilidade, encontrando nos livros, a evasão que se assemelha a liberdade. “Só há duas decisões - diz Juliano -: submeter-se ou usar a sua imaginação.” No secretismo do seu quarto, dialoga com o casal Sartre-Simone como livros-companheiros, a quem expõe angústias e fragilidades. É a invenção que torna aceitável os pais verdadeiros e a fantasia que justifica a redenção da mentira. O personagem, alter ego do autor, assinalou reviravolta na carreira de Rasi, estreando a trajetória definitiva e marcante da sua dramaturgia “biográfica”, a partir de então (1987). Abandona, e faz questão de renegar a produção anterior, que não queria que esta essa estreia, fosse vinculada à sua “dramaturgia “besteirol”. “A Cerimônia do Adeus” inauguraria nova fase, antecipando tias e outras membros da família, e memórias redivivas num universo teatral com assinatura grifada. O que não mudaria, até a última peça em 2003, ano de sua morte, foi o humor, traço pessoal de fidelidade à tradição da comédia de costumes brasileira. Apesar do indisfarçável tom confessional, a sua construção dramatúrgica tem a medida para alcançar efeitos bem afiados. A criação de Simone e Sartre como personagens vivos, com os quais Juliano convive na área libertadora do quarto, não é somente um achado/truque, mas uma plot/cena do casal, que vai-se explicando, com humor sutil, desenrolado fio narrativo entre real e imaginário. O arcabouço dramático, que contém muito de febre e delírio cômico, perpassa pelo poético, quando o texto arranha o afeto agridoce de Juliano por aqueles que estão à sua volta: por determinação ou escolha. A primeira versão da peça, em 1987 no Teatro dos Quatro, no Rio, direção de Paulo Mamede, harmonizava a imaginação do quarto-santuário e o espaço físico do conflito. Mauro Rasi recebeu o troféu de melhor autor de todas as premiações disponíveis (Molière e Mambembe), além da montagem receber outros dois destaque para Nathalia Thimberg (Simone) e Sergio Britto (Sartre). 

Eucir de Souza, Beth Goulart e Lucas Lentini , direção de Ulysses Cruz (2023)

Um ano depois, em nova montagem, agora em São Paulo, assinada por Ulysses Cruz, o espectador que assistiu a versão carioca, ficou surpreso com a visão paulistana. A plateia de lá, perguntaria a razão de tantos prêmios e o porque do reconhecimento do público de cá. Cruz não emitiu muitos sinais de identificação com o texto, reduzindo-o a crônica que esvaziava as  possibilidades evocativas em favor de uma supra realidade banalizada. Três décadas depois, Ulysses está de volta ao mesmo texto,  em montagem muito semelhante àquela que, originalmente, já demonstrava a pouco identidade no passado. Os desajustes da cena, na atual versão, se revelam, de início, pela  ausência de cenários. Os dispersos elementos (livros, teclado confinado no bastidor, vaso de samambaia, telão branco de fundo) e as portas laterais condenam a narrativa a um involuntário “vaudeville memorialista”, destruindo a convenção, rompendo com a chave básica da dramaturgia: o quarto de Juliano. É de onde a fantasia  se cria e é manipulada, desvendando o jogo dramático da existência física de Sartre e Simone. Para além desse espaço visualmente vazio e de pouca densidade como ambientação, as projeções são meramente ilustrativas e um tanto rebarbativas na conexão com a palavra. A linha interpretativa imposta ao elenco, apaga o humor do texto, nivela a trama numa corrente plana, e  reduz as características das personagens a desenhos borrados. Algumas intervenções desabilitam o arcabouço da montagem. A cena inicial é uma delas, como também o descompasso nas atuações do casal existencialista e da mãe Aspásia. O Juliano que aparece em cena, substitui o papel central de narrador pela função de figura secundária em constante e inútil troca de figurino.