Crítica/ “Elza”
Entre o prólogo, quando são citadas várias
mulheres negras, e o epílogo, quando se apontam armas para recomeços, emerge
uma voz única, de timbre especial e ressonância duradoura, que repercute na
batida de latas e no compasso rascante da biografia. “Elza” é um musical, mas
ao contrário de tantos outros, estende uma vida a várias tonalidades de suas
manifestações, trazendo não apenas a sonoridade que exalta, mas as dissonâncias
que assentam. Para além das histórias que o texto de Vinícius Calderoni relata
e o repertório de Elza Soares se encaixa, há a encenação de Duda Maia que
bafeja, com técnica, sensibilidade e emoção, vitalidade a um gênero degastado
pela acomodação, repetição de fórmulas e precária execução. Esse que poderia
ser classificado mais um musical-biográfico, não foge à regra e muito menos
“revoluciona” o gênero ou subverte a linguagem. É tão-somente espetáculo
teatral de alta qualidade de realização, com rigor criativo e perspectiva reflexiva,
que encontra na coletivização do estilo, a individualidade da linguagem. O
musical assinado por Duda Maia leva a voz a registros dramáticos e de protesto,
sem deixar de ecoar a particularidade de uma história que centraliza os meios
de projeta-la em múltiplos expressões. No corpo, as sete atrizes-cantores interpretam
os movimentos que surgem a partir da instabilidade, a mesma que percorre a vida
da cantora. São baldes e praticáveis móveis sobre os quais o elenco se
equilibra em referência a latas d’água e transporte aos tempos difíceis. Na entonação,
o repertório musical é repassado com integrada e suave passagem ao fluxo
narrativo. Na ambientação, os elementos de cena e a iluminação criam espaço que emoldura a geometria das marcações.
A montagem se encorpa através de cada um de seus planos, em soluções cênicas
bem delineadas, evitando o mero efeito e a superficialidade do brilho. A
qualidade da direção musical de Pedro Luís e dos arranjos de Letieres Leite
encontra na execução das musicistas – Antônia Adnet, Georgiana Camara, Guta
Menezes, Marfa Kourakina, Neila Kadhi e Priscila Azevedo – um naipe de
excelentes instrumentistas. O cenário de André Cortez, com os painéis e a
multiplicação de usos para os baldes (pedestais, refletores, amplificadores) serve
com funcionalidade e invenção à concepção da diretora. A iluminação de Renato
Machado, engenhosa no desenho e sensível na luminosidade, é outro dos melhores
destaques da montagem. Mas são as atrizes-cantoras – Janamô, Júlia Dias, Késsia
Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Verônica Bonfim e Larissa Luz – que exibem
mais do que vozes com domínio técnico, beleza tonal e segurança de palco. O
canto, a composição corporal e a atuação se harmonizam num conjunto de alto
nível. Larissa Luz, por conta da interpretação mais conotada a Elza Soares, e pela semelhança ao timbre da
cantora, recriado com a força original, conquista, por indiscutível mérito, o
protagonismo de um musical que dá gás revigorante ao desgastado modelo
biográfico.