Crítica/ “A
invenção do Nordeste"
Há dois anos, no mesmo Sesc de Copacabana de
agora, onde apresenta “A invenção do Nordeste,” o grupo Carmin de Natal estreava “Jacy”, que trazia do Rio Grande do Norte uma
história local sem qualquer resquício de regionalismo. Contava-se a vida de
Jacy, que conheceu soldado americano das tropas que estiveram na cidade durante
a Segunda Guerra, e mostrava painel do coronelismo na transferência e
manutenção do poder político. Com esta nova montagem, o coletivo potiguar se
volta, decisivamente, para a sua geografia,
demarcada não apenas na territorialidade, mas no acento crítico do olhar
identitário e no sotaque múltiplo de vozes dúbias. Baseado em livro homônimo de
Durval Muniz de Albuquerque Jr., roteirizado por Henrique Fontes e Pablo
Capistrano, a montagem expõe desconstruções de verdades históricas e de
reinvenções culturais folclorizadas. A preparação de dois atores nordestinos para
testes para uma produção do Sudeste lança a dupla e seu ensaiador a descobrirem
o real personagem da região: tanto para cada um deles, quanto para os de fora com
expectativas de reproduzir estereótipos. Em meio a indícios e dúvidas, avaliam
a extensão de uma “nordestinidade” improvável e de sinuosas práticas teatrais.
Sempre com humor, irônico, autorreferente, demolidor, a dramaturgia encontra na
direção de Quitéria Kelly a sua melhor interpretação. Os símbolos e sinais
emitidos pela tentativa de classificação sociocultural são traduzidos por
corpos e imagens, que desarmam conceitos e opiniões. O barulho de chocalhos,
que propõe poética ambientação, contrasta com certezas históricas,
sociológicas, e com obras literárias sacralizadas. A iconografia utilizada, em
projeção de filmes, vídeos e nos materiais artesanais, é reproduzida em coreografias
críticas. A narrativa mostra algumas quebras,
mas logo se recupera com surpreendentes soluções. O mapa com borra de café é
tão divertido quanto é abusada a brincadeira com a fala regional. O trio de
atores – Henrique Fontes, Mateus Cardos e Robson Medeiros – referenda com
interpretações finamente ajustadas o espírito da cena. E são apoiados por
criativa preparação corporal (Ana Claudia
Albano Vieira), sólida preparação vocal (Gilmar Bedaque) e inventiva
cenografia e direção de arte (Mathieu Duvignaud). “A invenção do Nordeste”
abusa da irreverência com o que está posto como definitivo, sejam os maneirismo
do teatro, os diversionismos geográficos e o humor da correção.