quarta-feira, 30 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/5/2018)

Crítica/“CérebroCoração”
Em busca de dissecar emoções
A ligação que Mariana Lima estabelece em “CérebroCoração” é através de uma dramaturgia didatizada em diálogo com lembranças à procura de caminhos para entender-se. Na busca de penetrar no funcionamento do cérebro para dissecar emoções dos “seres de água do mar e de lágrimas”, a atriz e autora inclui citações de leituras (Marcel Proust), inspirações visuais (Leonilson), descrições cirúrgicas (retirada de edema) e pressão do mundo (subjetividade do aneurisma). São cenas que seguem fluxo de veias abertas à exploração de “pensamentos emaranhados”, de “pensar com fazer e lembrar e ser”. Não é fácil acompanhar esse caldo de sentimentos, impressões e vivências, envolto em frieza expositiva de aula ilustrada. Há questões de forma que afastam a natureza da escrita do caráter do monólogo. Os escaninhos do texto submergem no descontínuo discurso cientifico, sem respirar com liberdade de explosão. O roteiro propõe ação física quando o eixo narrativo se desloca para ação interior. O desencontro de cérebro e coração, que o título encaixa e faz das maiúsculas as letras da união, desfoca as incertezas da razão para a fragilidade da emoção. Essa circulação entre dois planos fica contraída pela didática de um e autenticidade de outro. O texto está vocacionado para ser lido, trazendo carga que aparenta o biográfico e restaura a memória. No palco, deixa a impressão de que poderia se desprender um tanto da aula, e soltar mais a alma. Os diretores Renato Linhares e Enrique Diaz aprofundam o estreitamento com encenação que se lança em várias frentes. Do performático à intervenção plástica, da exposição física a mecânica dos gestos, a palavra está sempre em movimento, correspondente aos atos, e menos às atitudes. A cenografia de Dina Salem Levy é decisiva e visceralmente integrada à concepção dos diretores. Com seus vários objetos manuseados pela atriz e pelos pequenos deslocamentos do cenário, além do efeito da terra, o cenário assume o papel pendular na interpretação de Mariana Lima. Cérebro e coração do espetáculo, Mariana tem atuação que não se delimita ao espaço da cena, mas o transcende com a pulsão que a levou a áreas tão sensíveis da sua escrita. O que sobressai na interpretação sincera umedecida de existência é a revelação de que “essa sou eu”. 

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (28/5/2018)

Crítica/ “Os guardas do Taj” 
Guardiões de uma cena sem meta
O texto do americano de ascendência indiana Rajiv Joseph atira em várias direções sem atingir quaisquer das muitas metas que pretende alcançar. Inicialmente, pode-se imaginar que seja sobre a disciplina, já que os dois guardas reais, postados nos muros que contornam a construção do Taj Mahal, devem obedecer a regra de não olhar para a obra antes de concluída. Logo depois, percebe-se que duas personalidades antagônicas falam de hierarquias e temperamentos sob a espada da punição. Em seguida, a grandiosidade do palácio de Agra é pretexto para encaminhar, e logo abandonar, discussão em torno do belo. Entre tantos impulsos, surge o massacre, executado pela dupla que decepa as mãos de milhares de trabalhadores da construção. Ainda resta as consequências do ato bárbaro, que desanda em delírios e culpas trocadas pela dupla. Pelos diversos estágios por onde se desenvolve essa trama de desvios e rumo hesitante, as cenas são atropeladas pela fixidez de cada uma delas. Descontínuas, quando escritas como sequenciais, buscam na ação o motor para os diálogos, que oscilam do trivial da amizade a mística dos devaneios. A direção duplicada de Rafael Primot e João Fonseca não provoca o par de atores a temperar a insossa preleção, ressaltando os desníveis do texto com interpretações que se mostram deslocadas. Há cuidado de produção na música original de Marcelo Pellegrini, extensivo ao figurino de Fábio Namatame. A cenografia de Marco Lima e a iluminação de Daniela Sanchez, com sutilezas de movimento no muro  e de tonalidades na luz, criam atmosfera indiana de eficiente e filigranado efeito visual. Reinaldo Gianecchini  se faz rígido e tenso nas primeiras cenas, com alguma exposição mecânica do personagem. No massacre, sua atuação não supera a impressão de gestos ensaiados. Ricardo Tozzi aproveita o comportamento mais distendido do guarda Babur para projetá-lo, sem traves, para a plateia. Mas quando o personagem entre em crise de consciência, o ator se intimida. 

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo ( 23/5/2018)

Crítica/ “A ordem natural das coisas”
A desordem absoluta das coisas

O determinismo que a expressão “a ordem natural das coisas” carrega como senso comum é desmentida pelos personagens do texto escrito e dirigido por Leonardo Netto. Lúcio se debate, sem saber como reagir, diante da rejeição da noiva no dia do casamento. Perplexo e depressivo, é acompanhado pelo ex-futuro cunhado Emiliano nas suas sucessivas perdas de confiança e aumento de doses alcoólicas. A chegada inesperada de uma vizinha, à procura de seu gato fugitivo, acrescenta peça inesperada ao jogo de acasos aparentes. Cada um age como se os movimentos confirmassem papéis imutáveis. Não há empenho de Lúcio em saber a razão do desprezo, assim como o casal se enreda em trama, incapaz de a desenredá-la. O contexto, profissional, afetivo, nostálgico, dramático, é exposto por monólogos que defrontam o trio com suas existências. O desejo enganoso de dominar quaisquer atitudes se perde nas infinitas possibilidades que tais atos podem provocar. O fundo do poço emocional é um mergulho que leva ao aumento da sua profundidade. E de aceitar que não é possível controlar absolutamente tudo. Leonardo Netto integra a situações realistas e a diálogos coloquiais plano reflexivo que pretende apenas caracterizar ação dramática de contornos definidos. Há uma história a contar, que assume na objetividade descritiva, o ponto de interesse e comunicabilidade. Bem estruturada e em ordem direta, a narrativa desmonta a naturalidade da cena, atribuindo às coisas a relatividade do seu valor. A direção envolve na cenografia de paredes vazadas, caixas de papelão e porta central de significante vermelho, de Elsa Romero, a troca nervosa de objetos e sentimentos. Ao ritmo das palavras dúbias e intenções incertas, reescreve-se drama psicológico, sem psicologismos, dramaturgia de situação única, de muitas derivações, e contenção de meios, com desperdício mínimo. Com poucas invenções e abandonando efeitos superficiais, Leonardo realiza, com comedimento de recursos e prudência criativa, montagem que oferece boa oportunidade de reencontro do público com um gênero, hoje nem sempre bem encenado. Beatriz Bertu imprime juventude e força viva para “vizinha de sitcom” que sai de cena com divertida menção a carta de despedida dos melodramas. Cirillo Luna mantém a ambiguidade do amigo em interpretação de convincente linearidade nas emoções. João Velho, um Lúcio exaltado na sua depressão pós-abandono e confuso na ressaca ante-revelação final, equaliza os estados arrebatados do personagem numa linha de contínuo cuidado em não extrapolar limites.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (21/5/2018)

Crítica/“Catarse
Invocação do passado para movimentar o presente
“Catarse”, intitulada pelo trio de autores – Clarice Zarvos, Felipe Vidal e Leonardo Corajo – como “uma paraópera, não dá muitas indicações em que estilo se realiza cenicamente. Até poderia se aproximar da ópera se não tentasse dissimular em diálogos realistas a inclinação para o musical dançado. A acomodação desses indícios, mesmo acanhados nas suas expressões, é  mais simples do que coordenar os planos narrativos da dramaturgia. Fato ocorrido na cidade de Estrasburgo, na França, em 1518, é utilizado como referência, simbólica-metafórica, para  “uma insatisfação represada” da vida atual. Um mulher que dançava, sozinha e sem música, pelas ruas da cidade, depois de uma semana contamina três dezenas de bailarinos, que em um mês já são 400. Esse contexto deflagrador, permeia cenas do discurso corrente na agenda político-social da vez. Questões de gênero, intolerância, injustiça, ecologia, violência são transpostos como atos provocadores para uma epidemia de dança à procura do mesmo efeito reagente. Ou alienante, dependendo da perspectiva do observador. São quadros desiguais em efeito e alcance, retratos fotográficos da desigualdade social, embutidos, artificialmente, na citação histórica. O elo entre os tempos é melhor determinado pela dança do que pela ação. Felipe Vidal, diretor, autor da trilha original e diretor musical, ao lado de Luciano Moreira, sustenta a montagem com roteiro sonoro e de movimentos mais coeso e convincente do que as superstições da narrativa. A diversidade de ritmos, que conduz as composições por sonoridades bem ajustadas às letras, simples, diretas e claras nas suas pretensões de explicitar o metafórico. A qualidade musical sobressai na montagem em que o elenco – Clarice Zarvos, Francisco Thiago Cavalcanti, Jefferson Almeida, Maurício Lima, Rômulo Galvão, Leonardo Corajo, Sérgio Medeiros, Noêmia Oliveira, Tainah Longras e Tainá Nogueira – participa como atores-bailarinos de uma invocação do passado para movimentar o presente.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (16/5/2018)

Crítica/ “O imortal”
Imortalidade sob o domínio da palavra

O conto “O imortal”, de Jorge Luis Borges, leva o leitor a tantas percepções quanto são os seus possíveis significados de fruição. As camadas narrativas que propõe e o caráter histórico-filosófico-fabular que o estrutura podem ser vistos como dificuldades quando transferidos para a cena. A versão teatral de Adriano Guimarães, que divide a dramaturgia com Patrick Pessoa, distende a  as possibilidades da transferência das características próprias de cada linguagem. Monólogo no palco como consequência natural da voz única do livro, a transposição persegue desvendamento em imagem sem fuga ao mistério da palavra. Os adaptadores utilizam, além do conto retirado da coletânea “Aleph”, conferência de Borges de 1978, intitulada “A imortalidade”, para a “história que parece irreal...com traços circunstanciais presente nos fatos, mas não na memória deles.” Há um relato que se inicia na descoberta de manuscrito esquecido nas páginas de um dos seis volumes da “Ilíada”, que percorre impérios, tempos e línguas “para viver no pensamento, na pura especulação.” Na peregrinação homérica em busca da Cidade dos Imortais chega-se à descoberta de que “só restam palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”. A montagem não afasta o espectador de acompanhar texto de conotações referenciadas ao literário e de sentido reflexivo, mas o aproxima de penetrar na escrita labiríntica com proposição de fala direta. A atriz recebe o público, já no palco, indicando lugares, oferecendo água. Mais do que desarmamento a eventuais obstáculos, é convite a entrada, livre e múltipla, numa dicção ativada. A direção de Adriano Guimarães reforça essa naturalidade do discurso, com coloração que procura o coloquial dramático que, a princípio, quebra formalismos. Na sequência, padroniza a comunicabilidade e desarticula a intensidade da expressão. A cenografia, assinada pelo diretor e por Ismael Monticelli, com  caixas de papelão em torre, livros espalhados e cadeira no centro, assume papel decorativo. Quando a única presença é a de gravação sonora, a atriz deixa o palco e se acomoda, anulada, no escuro do bastidor improvisado. O espaço vazio da instalação plástica de dispensável imponência, resulta em tempo morto do monólogo, e na ampliação artificial  do que se ouve. Gisele Fróes assume,  em integral comprometimento, a opção de encontrar a naturalidade da interpretação. Se em trechos adota a nuança de contar uma fábula, em outros delineia um ar de hesitação, de perda de ritmo, que antes de confundir, sela a atuação. Não há ênfases ou destaques nas passagens do tempo cênico ao explorar os diversos níveis da imortalidade no universo das ideias. Gisele Fróes domina a complexidade da palavra encenada, com a consciência de saber como fazê-la ressoar. A registrar a cena final, em que a letra de Iggy Pop ouvida no início, repercute na sua gravação de “Insensatez”, de Tom e Vinícius, e se estende a Chopin, em sensível conexão e síntese do que se assistiu.