domingo, 17 de fevereiro de 2019

Temporada 2019


A escalada de monólogos na temporada carioca continua em avassalador movimento ascendente. Dois exemplares, importados de São Paulo, – “A próxima estação – Um espetáculo para ler” (Sesc Copacabana) e “O espelho” Poerinha) – confirmam tendência de apropriação do gênero para contornar problemas extra e intra palco.

Crítica/ “A próxima estação – Um espetáculo para ler” 
O leitor: ilustração da passagem do tempo
São 70 minutos de leitura de um texto italiano que percorre a convivência de um casal, de 2015 aos sinais do fim, 50 anos depois. Uma tela no centro do espaço, projeta, com humor um tanto cruel, comentário visual sobre a passagem do tempo, flagrando o presente, projetando o futuro. Ao lado, o ator deposita o texto que lê numa estante, em coordenada sequência com a projeção, e apoio secundário de legendas e música. E assim, está posto em cena “um espetáculo para ler”. Não se discute se é, efetivamente, um espetáculo. Ele se prova na realização de seus condicionantes (ator, cenário, sonorização, iluminação), mas se contradiz na base de sua premissa (leitura expositiva). O que leva um ator a encontrar num escrito (conto?, esquete ilustrado?) possibilidades de abertura cênica para material não mais que curioso? O teor do que se extrai da narrativa, poderia provocar o imaginário da plateia pelo caráter identitário das vivências do casal, engolfados pelas transformações que o cercam e o atingem. É possível que o consiga, mesmo que a evolução do tempo se confunda com a previsibilidade “dramática” de suas consequências. O formato de monólogo, em si um elemento inibidor da expansão dos meios expressivos, acaba por concentrar no ator, o veículo dominante, relembrando o exibicionismo de antigos intérpretes.  Ao restringir à leitura o que já está sobrecarregado de individualização, “A próxima estação” fica estrangulada pelos seus padrões formadores. Cacá Carvalho mergulha na sua escolha com aparente prudência de quem está experimentando, apalpando limites ou criando alternativas. Como ator experiente, busca atuação com pouca modulação, em convívio azeitado com as projeções, que mostram melhor aquilo que é dito.

Crítica/ “Espelhos”
A leitura: exibição de estilos

O monólogo do ator Ney Piacentini reflete na duplicidade da escolha de contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa a unidade de transpor, cenicamente, o literário. Ambos com o mesmo título, de épocas e autores bem diversos, o material de que trata cada um deles, projeta para além da refração apontada pelo título. É da essência de se reconhecer, ou não, de que é feita a matéria do personagem machadiano, em que sua imagem deixou de ser refletida no espelho. De Rosa, as camadas que encobrem a essência, precisam ser vencidas para tentar chegar ao âmago. São produções literárias de tempos e embocaduras diversas, reunidas nesse monólogo-recital, que estabelece linha do tempo “dramática” no tratamento de ambas. O ator, centro absoluto, é provocado a encenar palavras tão carregadas de subjetividade, na primeira parte, enquadrado na aura de um sarau. E  ao se aproximar da projeção física, na segunda parte, duela melhor com a fala teatralizada. Apesar dos tratamentos contrastados, permanece a convenção de um intérprete diante da literatura, em empenhada tentativa de ultrapassar a tentação de supra-encenar a palavra para encontrar a mesma intimidade do ato de ler. A montagem fica restrita ao acerto, de estilos e épocas, evitando impor-lhes falso invólucro autônomo. Ney Piacentini colabora, fortemente, para que os eventuais atritos de acomodação, se atenuem. Com sua inteligência interpretativa e impostação reflexiva sobre o ato teatral, o ator maneja o convencionalismo da forma com a habilidade da razão.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “Antes que a definitiva noite se espalhe em latinoamerica"
Longa jornada literária para a noite latino-americana
Em 2013, quando Felipe Hirsch apresentou “Puzzle” na Feira do Livro de Frankfurt, quebra-cabeças teatral que contrastava, criticamente,  autores brasileiros com a crueza da realidade nacional,  o diretor carioca de formação curitibana, subverteu sua linguagem cênica. Aquele que deveria ser um espetáculo de exaltação da literatura brasileira, homenageada na feira, provocaria contundentes reações, não só pela exposição na íntegra de escritos de matizes fortes, como no formalismo de atores enredados em estilos, corpos, vozes e tinta. Três anos depois, Hirsch volta à mesma linguagem em “A tragédia e a comédia latino-americana”, ampliando o espectro geográfico, mantendo a proposta estilística. Em “Antes que a definitiva noite se espalhe em latinoamerica”, cartaz do Oi Futuro, é possível, se considerado como sequência, que o diretor tenha consolidado aquilo que há seis anos foi definido como “um tríptico fulminante”. Mas hoje, parecerá a repetição de fórmula cênica, que se esgarçou no tempo e não se redimensionou no espaço, cristalizando os meios, provocadores e impactantes, da origem. O que foi dramaturgia cênica, transformou-se em sistema redundante. O que era força teatral para além do ineditismo e originalidade, se confunde com maneirismo normativo. A estrutura se mantém com a seleção de autores da região do título, que inclui os brasileiros André Dhmaer, Nuno Ramos e Felipe Hirsch, os chilenos Guillermo Calderón e Manuela Infante e os argentinos Pablo Katchadjan e Rafael Spregelburd. Escritos especialmente para esta encenação e distribuídos por gêneros diversos – crônica, fábula, monólogo, esquete -, pouco sensíveis à customização de palco. O que os une é visão panorâmica da existência, artística, política, social, num continente de exclusões, negativas e alienações. Alguns tocam com ironia nesse embate de contradições. Outros, adotam, como desabafo, o confronto com a complexidade do universo retratado. As desconexões textos-cena ficam ampliadas no tratamento que o diretor atribui a cada um os quadros. Na primeira cena, em que a arte mostra os seus dentes cariados pelo desprezo, a relação de criadores citados e a sobrecarga referencial não apagam as fagulhas de humor. Já  nas seguintes, no monólogo da atriz em crise de identidade ou na fabulação sobre a investida de matadores a um poeta, e ainda de uma brasilidade sangrenta, de choque de mentira e verdade e de assassinato da sexualidade, tanta diversificação significa apenas falta de rumo. O diretor, em meio a débeis estímulos textuais, tem dificuldades em encaminhar sua construção teatral, encontrando soluções que se confundem com escolhas aleatórias. O convite à plateia para se transferir para o palco é tão dispensável na melhor comunicabilidade de uma fábula confusa de raiz. Um ator nu não encobre o que ressoa melhor no silêncio da leitura. Os desencontros se transferem para a cenografia, que não provoca a sensação, talvez pretendida, de instabilidade. O elenco demonstra um tour de force interpretativo, com atuações que vencem, muitas delas, a aridez do que enfrentam. Debora Bloch numa chave de humor inteligente, dribla a dureza de textos pouco maleáveis à sua destreza técnica de atriz. Guilherme Weber leva com segurança vocal e exposição corajosa as propostas da direção. Renata Gaspar demonstra, quando tem maior oportunidade,  a sua disponibilidade para a comédia. Jefferson Schroeder ainda está inseguro diante de exigentes intervenções. Nely Coelho e Blackyva estão deslocados do contexto.