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“Ao Vivo [Dentro da Cabeça de Alguém}” |
Críticas, opinião, notícias e indicações teatrais.
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“Deserto”: direção Luiz Felipe Reis |
A temporada teatral de 2024 pode ser considerada a mais consolidada, depois dos anos em que palcos e bilheterias estiverem interditados pela pandemia. Portas abertas, alguns programas de apoio reeditados, convivência pacificada com as redes sociais (o boca-a-boca, a publicidade tradicional, a desaparecida crítica de jornal e até a venda de ingressos emigraram para a internet), recompuseram a malha de funcionamento do panorama. Pequenas mudanças e grandes ajustes restabeleceram os papéis que a cena carioca parece desempenhar a partir de desafios de novas formas de acomodação. Mas lançam muitas perguntas de difíceis respostas. Qual o lugar do teatro diante da aculturação digital e das banalizações dos comportamentos? Há público identificável para além de estatísticas qualitativas de espectadores comparado com medições anteriores? Que gênero ou estilo de encenação aponta alguma tendência nas produções desse ano? Para que direção se encaminha a suposta nova realidade (“o novo normal”), sob qualquer especulação diante do imponderável do que pode vir a se desenhar? São dúvidas que acompanham, há tempos, as temporadas, e que se ampliam no momento em que o teatro precisa se ajustar (ou desprender-se) de variadas condicionantes. O que talvez se torne imperioso perguntar, é de como a criação fica interferida nesse quadro que já se prenunciava há mais de uma década. O dito teatro comercial como sobrevive? Quais as bases das investidas da dramaturgia contemporânea na renovação? Ainda é possível dimensionar plateias por preferências? As pautas identitárias e o ativismo têm fôlego para encontrar paralelismo com expressão cênica? A atividade parece estar se amoldando, pelo menos em parte, aos atuais desafios em relação aos pré e pós pandemia. A permanência de uma peça em cartaz é de pouco mais de quatro semanas. Essa média baixa pode ser explicada pela cautela com que as produções enfrentam custos, disponibilidade das casas de espetáculo, e ponderações sobre os contornos e volume das plateias. Algumas montagens, na maioria comédias (“Agora que são Elas”, “Duetos”) rompem a restrita duração em cartaz. Outras mais antigas (“In on It” e “As Crianças”) voltam para tentar reencontrar o fluxo de público do passado.. Diretores com presença referencial na década de 1990, Gerald Thomas (“O Traidor”) e Moacir Góes (“O Segredo de Brokeback Mountain” e “Jesus nos Últimos Dias”) reaparecem em discretas exibições. A enxurrada de musicais, que se supõe tenham criado relações diretas com patrocinadores e fidelidade de público, se abrigam em endereçõs quase residenciais: no Centro (Teatro Riachuelo) e na Barra da Tijuca (Multiplan” e Teatro das Artes). E se apresentam em estilos múltiplos, oscilando da Broadway (“Querido Evan Hansen”) a Hollywood (“ Hairspray”), de biográfico (“Tom Jobim Musical”) a adaptado (“Viva o Povo Brasileiro”). A produção em quantidade se manteve próxima a de 2020. Muitas estreias aconteceram, a partir da liberação de modestas verbas de editais após o aprisionamento dos desérticos quatro anos. Teatros que estavam ignorados (Glauce Rocha, Dulcina, CCJ), fechados (Ziembinski, Correios), reformados (CCBB, Sergio Porto, Carlos Gomes, João Caetano), e escondidos(Espaço Abu, Sala Preta, Sala Eletroacústica da Cidade das Artes) entraram no circuito. Se reabertos ou reintegrados, é porque houve procura, não apenas de público, mas de demandas voluntaristas dos que “precisam” estar no palco. A modesta ambição das produções, sob quaisquer perspectivas, acaba por reduzi-las a voos curtos de asas partidas. Os monólogos, provavelmente, mais atrelados, a questões financeiras do que estéticas, proliferaram em escala ascendente. Atores veteranos ( Othon Bastos - “Não Me Entrego, Não!”, Irene Ravache – “Alma Despejada”), e citações evocativas (“Jandira - Em Busca do Bonde Perdido”), dominaram em arranjos cênicos econômicos. A cota anual de textos de Nelson Rodrigues sofreu pequena baixa, com apenas dois textos do autor (“A Falecida” e “Bonitinha, mas Ordinária”). A persistência na busca de trabalhos com força criativa, encontrou assinaturas, que reafirmam o compromisso - com as biografias. Daniela Pereira da Silva confirma em texto poético - “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” - sensível construção de sua dramaturgia. Exemplar que demonstra a “maturidade” em repertório autoral, impulsionado por vozes dissonantes e títulos provocativos: “Não Existem Níveis Seguros Para Consumo de Drogas”, “Estragaram Todos os Meus Sonhos,” “Por Uma Vida Um Pouco Menos Ordinária”. Yara de Novais assinou três montagens de bom acabamento. Parceira de longa data da atriz Debora Falabella, Yara foi responsável pelas interpretações precisas da atriz, tanto em “Prima Facie”, quanto na volta de “Neste Mundo Louco”. Monólogos baseados em “playwriting” eficiente, a direção assegurou à intérprete condições para explorar o seu melhor, Em “Lady Tempestade”, numa linha falsamente desconstrutiva, transita pelos espaços de narração/ação a serviço do temperamento de Andrea Beltrão. Luiz Felipe Reis em “Deserto” refina seu universo cênico, cultivado e desenvolvido em apenas uma década, composto por “desertos e ruínas do mundo em que vivemos”. A firmeza de sua dramaturgia cênica (de “A Inútil Biografia de um Homem Qualquer” (2014) a “Galáxias” (2018), passando por “Tudo que Brilha no Escuro” (2022), certifica Luiz Felipe como diretor com idioma próprio. A pandemia dividiu, planetariamente, a vida entre dois tempos. As memórias do antes, repercutem no depois, com sentimentos de perda, que se misturam a incertezas de projetos futuros. O teatro carioca, tão exposto a percalços, caminhou este ano, hesitante e inseguro, sem saber os rumos a seguir, pisando solo minado de dúvidas. Como ensina o ditado popular: “O tempo é o senhor da razão.” Mas em que direção ir, se o tempo perdeu a razão.
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(“Dona Doida” - 25/7/1994 – O Globo)
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Giulia Nadruz: “Funny Girl” |
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Ana Carbatti: “Museu Nacional” |
A cidade é também o endereço do Cia. Barca dos Corações Partidos, que em pouco mais de uma década, estabeleceu novas técnicas e sonoridades na linguagem do musical brasileiro. Este ano, apresentou “Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo)”, tema infenso ao calor dos brilhos e a temperatura alta dos efeitos. Na curta, mas marcante carreira do grupo, já estão desenhadas as características originais e inconfundíveis dos músicos-atores. Com dinâmica cênica, em que a música é mais do que elemento complementar, a trilha ganha representação dançada de libretos ora biográficos (Jackson do Pandeiro, Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga), ora construção simbiótica de música, dramaturgia e movimento com gramática inconfundível (“Auê”).
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Bibi Ferreira: “Minha Querida Lady” |
No histórico dos musicais no Brasil com selo de importação, “My Fair Lady” (“Minha Querida Lady”, na tradução nacional”) abriu os portos, na década de 1960, para a entrada do modelo. Em transcrição direta, com diretores e equipes técnicas com know-how da franquia, o que se assistia aqui era cópia integral do que se criou por lá. “Hello Dolly”, “Chorus Line”, ”Evita”, “Fantasma da Ópera”, “Les Misérables”, “Chicago”, “Rei Leão”, se sucederam nas décadas seguintes, formando geração de atores, cantores e bailarinos que correspondiam, cada vez mais e com maior capacitação e ajustamento, aos padrões exigidos pelas empresas exportadoras. Em paralelo, desenhava-se, em especial na década de 1990, um tipo de musical à brasileira, com personagens da música e do teatro, que eram reverenciados como fórmula de integrar o repertório da vida com a vivência artística. Nesta temporada, essa fórmula, já desgastada, reencontrou em produções, nem sempre muito cuidadas, a possibilidade de atrair plateia. Dedicados a cantores e compositores (Ney Matogrosso, Clara Nunes, Gonzaguinha, Cazuza, Belchior, Dominguinhos, Zé Ramalho), a décadas, e estilos, literatura e até a hotéis, a oferta foi variada, mas um tanto tímida de fugir aos maneirismos das repetições.
Talvez seja um ensaio triplo sobre cenas de “A Gaivota”, de Tchekhov. Ou fragmentos cênicos na tentativa de estabelecer unidades contrastadas de linguagens. E ainda, exercício performático de filosofar sobre o caos que nos cerca. Também jogo teatral que desloca regras e técnicas do processo (projeto) para o produto (publico). “Voo Livre” pode ser tudo isso, e mais alguma coisa que instigue o espectador para decolagem própria. Em cartaz por quatro semanas no Sesc Copacabana, o tríptico teatral dirigido por Marcio Abreu se divide por títulos - Arte, Tempo, Futuros –, que se combinam no mesmo arcabouço de sustentação, mas com expressões autônomas. Aparentemente, sem pretensões maiores, senão a de tatear desdobramentos que a narrativa russa e convidados (poetas, filósofos, ensaístas) sugerem ao encenador-autor, a proposta arranca com a liberdade de experimentar (meios, modos, maneiras). Na base desta investigativa dramaturgia cênica, há o que dizer, especular, tocar em tensões (da arte, da realidade, do desconhecido). Sem qualquer resquício de impositivos ou de certezas, mas de somente percurso poético, em que a força da palavra é o que sustenta o olhar aberto ao instável, ao incerto, ao improvável. Em uma frase com alguma ironia sobre o como fazer e dizer, uma das atrizes resume ao que se assiste: “filosofando em torno de caos lá de fora”. O tempo do teatro se confunde com o verso de Leda Maria Martins e melodia de Felipe Storino: “No tempo o corpo bailarina bailarina/no corpo o tempo espirala espirala/ nos cosmos tudo baila revoa remoinha”. O tempo de vida e criação acaba num estalar de dedos, não importa os rituais e desejos de prolongá-lo ou adiá-los. A intermitência do tempo deixa a existência na rotina de gestos e quedas, em movimentos de partidas e expulsões, de passagens sem nenhuma permanência. À volta de mesa e cadeiras do cotidiano, o mundo e a arte se enredam na brutalidade e poética, fixando-se neste voo livre de uma cena instigante, simbolizada na imagem de escultura em parque de Berlim, em memória da vítimas do nazismo. Como diz Nina, personagem de “A Gaivota”, na leitura sensível de Renata Sorrah: “Os homens, os leões, as águias e as perdizes, os veados, os gansos, as aranhas, as estrelas marinhas e todas as criaturas invisíveis aos nossos olhos, tudo que vive, tudo e todos, após percorrer o seu triste ciclo mortal, estão agora extintos”.
Em simultâneo, duas montagens do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, estão em cena com diferentes diretores e autógrafos maiúsculos. Moacir Chaves assina “Menino é o Pai do Homem” (título de um dos capítulos do livro), na Cidade das Artes, e Paulo de Moraes, “Brás Cubas”, no Teatro II do CCBB. Não parece coincidência, essa duplicidade de visões sobre uma mesma obra, mas abordagens teatrais paralelas da primorosa construção literária que se debruça, com ironia e mordacidade, sobre tantos fins e nenhum legado, “senão aquele da nossa miséria”. Machado, que escreveu peças e exerceu a crítica, se mostra íntegro em encenações tão contrastantes e inventivas .
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“Menino é o Pai do Homem”: direção de Moacir Chaves |
Na entrada da sala, um recanto sugere ambientação do tempo de Machado, levando a pensar que tal visual anteciparia montagem evocativa, de contornos documentais. Primeira impressão que se desfaz ao entrar na sala, e ser abrigado por dispositivo cênico multimídia, de efeito plástico, a que o iluminador Paulo César Medeiros definiu como “Nave de Luz”, e o cenógrafo Sérgio Marimba desenhou como palco-instalação, em que cortinas transparentes e espectadores em frontalidade com a “ação”, são envolvidos por imagens e palavras. O texto machadiano, essencialmente literário é contido em universo visual para encontrar sua teatralidade. A exposição cênica recria o ritmo da leitura dos capítulos, mantendo em linha a força expressiva do original e a modulação interpretativa do elenco. Os atores em pequenas oscilações vocais e andamento corporal definido, percorrem os meandros machadianos sem quaisquer destaques ou ênfases. Caminham por sua inteireza. A concepção uniforme , seja de voz e de movimento, refina o tom narrativo nos pontos mais sensíveis que perpassam o que diz o “defunto-autor”. A envolvência da plateia, não se dá apenas pelas projeções (anúncios de venda de escravos, fotos da geografia urbana, frases soltas), mas como a direção, com a mesma acuidade do escritor, aponta para as contradições de sociedade insepulta,
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“Brás Cubas”: direção de Paulo Moraes |
Na dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça, e na encenação do grupo Armazém, “Brás Cubas” se multiplica por três: o morto que conta; o personagem que vive; e o autor que “atualiza” o tempo. Em tantos corpos, o homem que fala de si e de seu mundo, não se frustra de usar da ironia para descrever “negativas”, as suas e do seu arredor. Num espaço cenográfico de elementos contemporâneas (quadro de giz, microfone, músico), essa trindade atua sobre o texto, cumprindo papel de sublinhar o que pode estar oculto na voz do morto. Machado interfere com comentários e alusões a si mesmo, enquanto Brás narrador dialoga com o Brás captado em ato. Essa divisão, permite que as aproximações temporais sejam traduzidas por cena intensa e ruidosa de imagens atraentes. A direção e a adaptação buscam integrar a palavra na ação, naquilo em que possa trazê-la à cena de forma explícita, sem barateá-la nas conotações atribuídas pela “adaptação”. Pelo contrário, valoriza e amplia seus significados, em provocativos e coloridos capítulos/cenas. Paredes são pichadas, hip-hop é ouvido, cabeça de hipopótamo aparece de surpresa, cortejo carnavalesco é revisto como citação, em quadros figurados que trazem vigor de palco a fluxo narrativo de livro. A cena final, com peso de tantas negativas, ganha tom poético, e amplia, no balanço em cavalinho de brinquedo, o testamento de uma vida, em que “não houve míngua nem sobra”, mas peso de negativas.