domingo, 8 de outubro de 2023

Voo Livre

 


Talvez seja um ensaio triplo sobre cenas de “A Gaivota”, de Tchekhov. Ou fragmentos cênicos na tentativa de estabelecer unidades contrastadas de linguagens. E ainda, exercício performático de filosofar sobre o caos que nos cerca. Também jogo teatral que desloca regras e técnicas do processo (projeto) para o produto (publico). “Voo Livre” pode ser tudo isso, e mais alguma coisa que instigue o espectador para decolagem própria. Em cartaz por quatro semanas no Sesc Copacabana, o tríptico teatral dirigido por Marcio Abreu se divide por títulos - Arte, Tempo, Futuros –, que se combinam no mesmo arcabouço de sustentação, mas com expressões autônomas. Aparentemente, sem pretensões maiores, senão a de tatear desdobramentos que a narrativa russa e convidados (poetas, filósofos, ensaístas) sugerem ao encenador-autor, a proposta arranca com a liberdade de experimentar (meios, modos, maneiras). Na base desta investigativa dramaturgia cênica, há o que dizer, especular, tocar em tensões (da arte, da realidade, do desconhecido). Sem qualquer resquício de impositivos ou de certezas, mas de somente percurso poético, em que a força da palavra é o que sustenta o olhar aberto ao instável, ao incerto, ao improvável. Em uma frase com alguma ironia sobre o como fazer e dizer, uma das atrizes resume ao que se assiste: “filosofando em torno de caos lá de fora”.  O tempo do teatro se confunde com o verso de Leda Maria Martins e melodia de Felipe Storino: “No tempo o corpo bailarina bailarina/no corpo o tempo espirala espirala/  nos cosmos tudo baila revoa remoinha”. O tempo de vida e criação acaba num estalar de dedos, não importa os rituais e desejos de prolongá-lo ou adiá-los. A intermitência do tempo deixa a existência na rotina de gestos  e quedas, em movimentos de partidas e expulsões, de passagens sem nenhuma permanência. À volta de mesa e cadeiras do cotidiano, o mundo e a arte se enredam na brutalidade e poética, fixando-se neste voo livre de uma cena instigante, simbolizada na imagem de escultura em parque de Berlim, em memória da vítimas do nazismo. Como diz Nina, personagem de “A Gaivota”, na leitura sensível de Renata Sorrah: “Os homens, os leões, as águias e as perdizes, os veados, os gansos, as aranhas, as estrelas marinhas e todas as criaturas invisíveis aos nossos olhos, tudo que vive, tudo e todos, após percorrer o seu triste ciclo mortal, estão agora extintos”.