domingo, 15 de maio de 2022

Máscaras do teatro de Gabriel Villela

“Henrique IV”: visão alegórica de verdade e mentira

São 50 montagens – a mais recente, “Henrique IV”, adaptação do texto de Luigi Pirandello –  que desenham a arquitetura cênica e a dramaturgia imagística do diretor mineiro Gabriel Villela. Se é da sua nativa cidade de Carmo do Rio Claro que retira os fundamentos para sua artesania teatral, é dos picadeiros mambembes e de ritos profanos ou religiosos que formaliza sua estética em torno de um feudo de memórias para transpor as máscaras de dramas e tragédias que encobrem conflitos humanos. Mais uma vez, Villela vai em busca do desvendamento do que está por trás dos rostos maquilados dos palhaços para reencontrar, no reinado pirandeliano, a dualidade das verdades e a farsa das mentiras da representação. “Henrique IV” não é apenas registro numérico na carreira do diretor, mas consolidação de embate visual que subverte o clássico para atingir sua alma expressiva. Pirandello, como antes Ibsen, Shakespeare, Strindberg, Camus ou Nelson Rodrigues, permite que palavra e imagem se mantenham indissociáveis nas suas integridades em espaço cênico meticulosamente delimitado pelo encenador, e no qual dissonâncias provocativas se ajustam a fantasias formais. O amplo palco do Teatro Antunes Filho do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, está ambientado por J.C Serroni como picadeiro de circo envolvido por atmosfera felliniana em sonoridades musicais e movimentos de ciranda inspirados no filme “Oito e Meio”. O figurino clownesco tipifica para além da caracterização, a mascarada reveladora das aparências. A ilusão, que o visual alegórico-poético imprime à montagem, confirma a cenografia da palavra como linguagem e marca de Gabriel Villela. Os monólogos em que se adensam e projetam a contundência da palavra, e que na dramaturgia de  Pirandello são dúvida e reflexão, encontram na frontalidade e refinamento da atuação de Chico Carvalho, a inteireza interpretativa do personagem Henrique IV. Em “Estado de Sítio”, espetáculo anterior de Gabriel Villela (2019), Chico Carvalho, em participação avassaladora, projetava como o Nada, o niilismo de “um cético de tudo”. É um ator de inteligência cênica e admirável domínio técnico.

Chico Carvalho: requinte na farsa da aparência  

Na década de 1990, geração de jovens encenadores ganhava predominância com gramática própria e sintaxe pessoal. Entre eles, Gabriel Villela que já sintonizava sua trajetória teatral de contornos regionais e mística popular às pulsações cênicas contemporâneas. Mas foi com sua inventiva adaptação de “Romeu e Julieta” (1992), que se revelaria nacionalmente. Ao redimensionar o teatro de rua ( à época, o grupo mineiro Galpão, produtor da montagem, se dedicava ao gênero), numa velha caminhonete como cenário, transmitia com genuína comunicabilidade a força trágica do casal shakespeariano. Lá estavam os bufões e palhaços de circo ao ar livre, as mesmas caras pintadas e nariz postiço dos clássicos de hoje.  Na sequência, o encenador risca a linha que determinaria seu universo autoral. Seja em “Guerra Santa”, “Ventania”, “Rua da Amargura” ou “Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu”, o rigor construtivo e o ilusionismo onírico dos ritos religiosos e circo-teatro da tradição mineira, se misturam à poética de “Vida É Sonho”, ao barroquismo emprestado a “Calígula” e a dramatização a “Macbeth”.  Nelson Rodrigues, no entanto, foi menos sensível aos cânones gabrielianos. Em “A Falecida” (1994) procura signos da cultura carioca (futebol,  samba e bilhar) para criar um espaço de jogo de emoções suburbanas, perdendo a mão nesta partida. No “Boca de Ouro” (2018) o bicheiro de Madureira sucumbia nas imagens carnavalizadas de um Drácula periférico e deus asteca fora de lugar