segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Retrospectiva da Temporada 2019


Ano de Penumbra Teatral

"Sísifo": o eterno sobe-e-desce da cena
Com o mesmo determinismo da passagem do tempo, as retrospectivas-resenhas de final de ano apontam para o registro como forma de manter presente o que se faz passado. O teatro, pela efemeridade da sua existência, é fugaz na dificuldade de ser reproduzir para além do próprio momento em que se realiza, revivendo pelos lastros que deixa na sensibilidade do momento, nas emoções do instante e na longevidade do pensamento. A retrospectiva da temporada teatral é a tentativa de reter o fluxo da cena na sequência do exercício da análise. A avaliação de 2019 reproduziu, em escala mais acentuada, o que já era visível no panorama dos últimos tempos. Em paralelo ao processo de enxugamento de ideias que justificassem, minimamente, o que se viu nos palcos, diminuíram, decisivamente, os meios produtivos, aos quais se juntou um apagamento técnico-dramatúrgico-cenico. Em quadro de voluntarismo anônimo, vozes solitárias sem reverberação e sonoridades desgastadas, restaram espasmos criativos, seja em algum traço cenográfico inventivo, solitário texto mais interveniente, ou pretendida encenação menos acomodada. Foram muitas as estreias, raras as notáveis. A quantidade, alta numericamente, mal escondeu as precariedades de produção e camuflou a impessoalidade das fichas técnicas, incapaz de compensar a aridez do panorama com, mesmo que incerto, sopro de vitalidade. Poucas, mas com força reativa, algumas estreias ocuparam o espaço esgarçado por tanta insignificância. Quase que por contraste, o diretor Felipe Hirsch ao repetir a fórmula que o acompanha há anos em “Antes que a definitiva noite se espalhe em latinoamerica”, deixou entrever o domínio dos meios que asseguram assinatura indelével às suas encenações. Se acrescentarmos a ruidosa performance cética-demolidora de “Fim” ao musical pop de David Bowie, Lazarus (as duas montagens foram vistas apenas em São Paulo) e a ópera e encenra ponta riativa. nações,,  David Bowieinoameriocair a f “Orphèe”, tem-se a medida desta identidade criativa. Em outra ponta de espetáculos grifados, “Estado de Sítio”, com a marca de Gabriel Villela, esteve no Rio em curta temporada. A versão para o texto de Albert Camus explode em imagens do imaginário alegórico-poético da estética consolidada de Villela. Também com fortes referências visuais, o simbolismo de Maeterlinck (autor belga do século 19) ganhou com a pesquisa de bonecos e máscaras, de Fabiana de Mello e Souza, exposição singularmente emoldurada. “Interior” mostrou-se sensível à construção fabular e poética do original. Em expressão atualizada, o realismo de “As Crianças” recebeu do diretor Rodrigo Portella tratamento que recicla a progressão da narrativa e quebras na ação, com pausas e silêncios que encontram renovada pulsação dramática. Na mesma linhagem realista, o drama musical “O Som e a Sílaba”, de Miguel Falabella, reveste o tradicionalismo de firme escrita e boa técnica vocal (as atrizes Mirna Rubin e Alessandra Maestrini). A proliferação de monólogos, burocráticos, exibicionistas, empobrecidos, foi quebrada por exceções: provocante, evocativa, atual.

"3 Maneiras de Tratar do Assunto": voz de confronto

Em “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, Leonardo Netto, autor e ator, radiografa reações homofóbicas em tempos e geografias diversas. Refração contundente de tragédia sofrida por Jéssika Menkel, “Cálculo Ilógico” se traduz no palco sem autopiedade ou emotividade ilustrativa. Com rigor e emoção na medida, a autora e atriz descreve pulsões interiores em sincero depoimento sobre o inexplicável. “Sísifo”, colagem de 60 cenas em que Gregório Duvivier transfere o mito para os impasses sócio-políticos-existenciais de agora, s políticos, com alusões críticas ao eterno sobe-e-desce desse nosso insano mundo. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “3 Maneiras de Tocar no Assunto”
 
De frente com o preconceito
O título do monólogo, escrito e levado ao palco do Teatro Poeirinha, aponta para a forma como a montagem pretende apresentar aquilo de que trata. Apenas o assunto fica a ser desvendado, somente à partir da primeira das cenas que compõe a trilogia temática: a homofobia. Direta na sua indignação, demonstrativa em seus efeitos, documental em seus registros, “3 Maneiras de  Tocar no Assunto” contrabalança o protesto sócio-político-emocional com o rigor da construção teatral. O ator e autor Leonardo Netto não confronta a plateia, unicamente, com os comportamentos daqueles que levam o preconceito ao paroxismo da irracionalidade. Utiliza-se de planos diversos (bullying, revolta social e discurso político) para apresentar painel interveniente de atitudes reativas e ações contestadoras. Sem qualquer intenção de agit-prop, projeta com dramaturgia cênica mais expositiva do que dramatizada, manifestações homófobas, capturadas na perspectiva de quem as sofrem. Na cena inicial,  a criança-adolescente, submetida a constrangimentos e violência, sob roupagem escolar, se defronta com a sua própria impotência para enfrentar a rejeição agressiva. No caminho, ficam delineados os rumos da tragédia. Na seguinte, de pedras na mão, grupo de gays, lésbicas, travestis, dragqueens, reage contra policiais que invadiram bar em Nova Iorque, há 50 anos. A atitude espontânea e indignada, anuncia o movimento LGBT. E na final, discursos do então deputado Jean Wyllis, entre 2011 e 2018, assinalam o machismo debochado e hipócrita de seus pares. A microfonia do parlamento não abafa a sonoridade límpida do desnudamento. A visão muralista do diretor Fabiano de Freitas propõe traços marcantes de um mesmo embate em tripla refração. Pequenos objetos (uma bacia é imagem de mergulho na tortura), projeções poéticas-documentais (Judy Garland, contraponto à barbárie), e interpretação de emoções contidas (o ator é um corpo descritivo), desenham a cenografia dramatúrgica. E ainda que a encenação carregue, no final, um tanto na ênfase, mantêm-se ao longo da sua duração, equilibrado ritmo narrativo. Leonardo Netto, que além do texto e atuação, assina a trilha sonora (ao lado de Rodrigo Marçal) e seleção de vídeos, tem sua participação completada pela luz sensívelvel de Renato Machadoel luz  naço de Rodrigo Marçal) de Renato Machado. Netto, frontalmente evolvente no episódio do bullying, acidamente “didático” no quadro da pedra na mão, e ironicamente provocativo na cena da casa legislativa, vivencia com integridade as palavras que escreveu.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ "Cálculo Ilógico"
Jéssicca Menkel: inventário de uma dor

Uma equação matemática, por suas próprias leis, é capaz de resolver problemas que ela mesma se propõe como condutora da solução. Na experiência humana, as incógnitas são outras, e os números (vivências) desconhecidos e bem mais difíceis de decifrar. O cálculo ilógico, que a autora e atriz Jéssica Menkel estabelece entre experiência de perda e a exatidão da quantificação numérica, é projetado com simetria emocional e dosimetria dramática em monólogo, com direção de Daniela Herz, em cena no Teatro Poeira. O fato real, que inspirou Jéssica a escrever e interpretar conflitantes  sentimentos, remonta aos seus dez anos, quando o irmão foi atropelado e morto por ônibus que avançou o sinal. O abalo afetivo, que se desdobra na permanência do luto, atinge a geometria familiar, antes um desenho com quatro vértices, depois da violência da morte, a dor pontiaguda de um triângulo escaleno. As correlações da soma que acumula o tempo, sem que diminua o esquecimento, totalizam o teorema que se demonstra sem lógica. Na procura da fórmula que elimine a variável incontornável da subtração, recorre-se até a valores desconhecidos (Senhor Superior Positivo Neutro). O resultado, se concretiza em dor e luto, sinais multiplicados. O texto, gerado pelo que a tragédia provocou na autora, interpõe códigos de ciência exata à exposição das fraturas daquilo que se permite como o depois. Não há qualquer autopiedade ou ilustração dramática, mas projeção sensibilizada e pessoal, traduzida em força emocional e técnica dramatúrgica. São estados descritos como movimentos interiores, em sincero depoimento de algo ainda inexplicável. A frontalidade do monólogo estabelece ligação direta com a plateia, na intermediação de diretor identificado com a emocionalidade das palavras e no domínio da forma cênica. Cenografia e figurino de Thanara Schonardie figuram em cubos a mobilidade da inação e na veste rota e na bicicleta retorcida, os fragmentos da assimetria. Como autora e intérprete de sua sobrevivência ao trágico, Jéssica Menkel transpõe os limites do depoimento e da autoficção para criar obra teatral: rigorosa e sensível.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “Macunaíma – Uma Rapsódia Musical”
Um "herói da nossa gente" envolto em plástico
Não deixa de ser necessário buscar no subtítulo que “Macunaíma” recebeu na versão de Bia Lessa, muito do que a diretora, cenógrafa e “escritora cênica” pretendeu com a encenação da obra de Mario de Andrade, no Teatro Carlos Gomes. A “rapsódia musical” atende, em parte com a citação às sonoridades e a integração da Cia. Barca dos Corações Partidos (“Auê” e “ Suassuna, o Auto do Reino do Sol”) à linguagem performática das atuações e a visualidade expandida da versão teatral do autor paulista. Em  180 minutos, a saga do personagem, perseguindo uma identidade ainda sem caráter, e movido, preguiçosamente, por tantas dubiedades quanto são as mutações que sofre ao longo de suas aventuras, se multiplica em imagens que asfixiam as palavras. O “herói da nossa gente”, o menino que por magia se faz homem, que é morto e ressuscita, percorre o Brasil, acompanhado dos irmãos e de séquito de araras e jandaias, divide-se em muitos para incorporar um todo. E esse todo, talvez seja a brasilidade, capturada nas suas contradições formativas e no sentido quase antropológico de recolha de lendas, folclore, e culturas. A fartura de referências e a complexidade do original - um dos mais atraentes para estudos acadêmicos – exigem, além de interpretação conceitual no palco, adaptação a uma linguagem cênica que projete a ação narrativa em sua caudalosa dimensão. Em que medida, a pluralidade de Macunaíma encontra a inevitável “sintetização” da teatralidade? Mesmo a impactante montagem de Antunes Filho, em 1978, se ressentia da condensação da palavra em ato e da imagem em poética. Não se trata de perda – qualquer adaptação sofre na transposição dos meios -, mas de inadequações. Bia Lessa envelopou em plásticos, que se desdobram em úteros-florestas, formas esvoaçantes e bolhas flutuantes, o percurso mágico-musical-físico, de tantas peripécias a partir do “fundo mato-virgem”. Até o retorno às origens, quando “tem mais não”, o volume de efeitos que buscam um esteticismo referendado por encenações dos anos 1970, assume formas que sublinham, pretendendo comentar, e acabam, apenas, por ilustrar. À rapsódia “andradiana”, acrescentou-se o musical, para incorporar o grupo Barca, o que acentua interferências na percepção da palavra, e amplia distância ao enquadramento da montagem. Acessórios virtuosos, os músicos – Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Fábio Enriquez, Renato Luciano, Ricca Barros, ao lado de instrumentistas convidados – conferem sonoridade poderosa ao que se restringe, em muitos momentos, a trilha de fundo. O destaque é a participação da Barca na melhor e mais envolvente cena, a que encerra o primeiro ato.
   

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Temporada 2019


Crítica/ “Sísifo”
Trampolim para o novo
Tal como Sísifo da mitologia grega, “Sísifo”, do monólogo de Vinícius Calderoni e Gregório Duvivier, diretor, ator e autores, no palco do Teatro Prudential, está condenado, na extensão do nosso tempo, e no imediatismo atual de nossos desejos, a repetir o movimento de carregar a vida cotidiana a um ponto mais alto, mas que, inevitavelmente, volta ao da partida. Em cenas curtas de como percorrer caminhos, Duvivier sobe uma rampa por 60 vezes, até alcançar o topo e cair. A ideia de travessia e de percurso se estende para além do ciclo repetitivo, para capturar existência digital, com seu séquito de banalidades, e em que ressaltam dúvidas filosóficas, questões ecológicas, comportamentos, indignação, e até toques irônicos de autoajuda. Em moto contínuo, o gesto de subir e cair se torna ato propulsor de uma linguagem seriada que se unifica pelas perplexidades expostas a cada investida. A maratona desse “herói absurdo de um tempo sem profundidade” é mantida pelo Sísifo-ator em um mesmo ritmo, sem quebras para que se estabelecem pausas de descanso, do intérprete e da plateia. Há um ritmo interno, narrativo, determinado pelo universo proposto, que mesmo fracionado em sua natureza e compassado no formato, se torna sequencial na fragmentação dos múltiplas categorias que projeta. Não são esquetes, muito menos referências ao humor que Duvivier exercita em outros meios expressivos. Colagem cênica, com estrutura baseada no mito, transfere a citação a impasses sócio-existenciais. Em dezenas de cenas - uma ou duas podem ser menos eficientes -, a montagem flui em voo de cruzeiro, criando alusões crítico-poéticas, como a do aparecimento das sacolas plásticas. (“Me conforta saber que quando eu perecer, você permanecerá. A certeza de sua eternidade é o conforto da minha finitude”). Gregório Duvivier conduz sua interpretação na convergência do físico com a palavra, alcançando um equilíbrio naturalizado entre esforço e interioridade. O ator se deixa conduzir pelo movimento ascendente, sustentando a voz, sem arfar, e o texto em suas modulações temáticas. Entre as variantes dessa envolvente travessia teatral, que reflete tantos destroços, amortecimentos, suicídios, vergonhas políticas-sociais, e futuros apocalípticos, os autores assinalam ao final: “A vida é impossível, isso é certo, mas nós seremos sempre os dissidentes, os rebeldes furiosos dessa causa. Do alto deste abismo, o salto significa morte certa: nós aceitamos, serenamente, esse veredicto, e saltamos na direção da vida. Isso não é o fim do mundo: esse é o trampolim para o novo”.