quarta-feira, 28 de junho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (28/6/2017)

Crítica/ “Suassuna - O Auto do Reino do Sol”
A encenação do universo de um autor multicolorido 

O que se assiste é a recriação de mundos artísticos e regionalismos míticos que vão ao encontro de saga musical que conta a invenção de uma obra. “Suassuna – O auto do Reino do Sol” segue o trajeto, da escrita e do teatro, em imagens e música, do autor paraibano até o imaginário de Taperoá, cidade em que tudo nasce e rota da aventura de viver como epopeia. Na aridez do sertão nordestino, encontra os sinais arquétipos de realidade de raiz espinhosa, colorida por lembranças de heróis clássicos, representações ingênuas do ato de sobreviver e rimas ricas da cultura popular. Ariano Suassuna está pleno neste musical escrito por Braulio Tavares, dirigido por Luiz Carlos Vasconcelos e apresentado pelo grupo Barca dos Corações Partidos. Longe de ser biográfica ou de exaltar a manufatura de uma escrita, a celebração cênica-literária envolve a alma de um universo, navegado com poética musical de um circo alegórico de palhaços quixotescos, retirantes trágicos e fabulação ancestral. O roteiro abre as comportas de caudal de citações para escorrer pelo leito de sons originais e sotaque territorial. A produção de Suassuna flui, generosa e natural, em texto de dicção própria, que condensa a humanidade de personagens de existência armorial em palco festivo. A bem costurada escrita de Braulio Tavares, deságua na excelente trilha sonora de Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho, e se derrama na direção sólida de Luiz Carlos Vasconcelos. A convergência dessa triangulação de papéis, resulta em musical que ultrapassa modelos do gênero, redimensiona questões regionalistas e expande dramaturgia de referência. O espetáculo se constitui por fundamentos estabelecidos, mas se mostra solto das amarras de pretensões eruditas e leve ao mirar em sedutora comunicabilidade. Os quadros se sucedem em ritmo ágil, marcado por repente cênico de métrica poética e cantoria esfuziante. A cenografia de Sérgio Marimba provoca impacto na sua aparente simplicidade, desde a entrada da carroça circense, memória da chegada de saltimbancos às feiras medievais, ao tecido que se transforma de painel de fundo à tenda de picadeiro. Os figurinos de Kika Lopes e Heloisa Stockler são mais do que atraentes  em sua múltipla diversidade. Fixam nas variadas estampas das cores e na rudeza terrosa das combinações dramáticas, encantamentos dos tempos narrativos. O visagismo de Uirandê de Holanda e Angélica Ribeiro complementa o visual irretocável. O elenco de atores-músicos-instrumentistas da Barca dos Corações Partidos prova, mais uma vez, a excelência desse ensemble multifuncional, capaz de sustentar mais de duas horas, praticamente sem sair de cena, a qualidade instrumental, a extensão vocal, e o artesanato interpretativo. Não há destaques, senão para o grupo, que em harmônica unidade, ressalta individualidades nas atuações. Adén Alves, tanto como D. Eufrásia, quanto como Sultana, se revela um ator que catalisa com sua voz arrebatadora e composição corporal a centralidade que impõe aos personagens. Eduardo Rios e Renato Luciano são palhaços das memórias de pantomimas. Fábio Enriquez se investe no adorável equino de um lúdico Cervantes. Alfredo Del Penho, para além das capacidades musicais, é um improvisador na melhor tradição repentista. Ricca Barros ganha igual altura do poder do major que interpreta. Rebeca Jamir, em duelo romântico, divide com Alfredo Del Penho, a mais sensível canção de um repertório de alto nível. Beto Lemos, Chris Mourão e Pedro Aune são presenças que tornam mais pulsante a encenação de um universo rico.                

domingo, 25 de junho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/6/2017)

Crítica/ "Janis"
Voz de ressonância desesperada


O monólogo biográfico-musical de Diogo Liberano sobre a cantora Janis Joplin segue o roteiro convencional para traçar seu perfil cênico, utilizando entrevistas, depoimentos, cartas, e tantas outras referências de imagem do ídolo da música pop. Mas a construção do autor não se restringe à alternância de vivências com sequência musical para diálogo dramático entre o choque inconformado com o seu tempo e a força criativa dos imponderáveis da arte. A Janis Joplin que emerge desse contraste é alguém que ocupou o espaço da criação com os desajustes da vida. Um e outros se confundem para flagrar um rastilho de fragilidades em meio a eclosão de uma voz de ressonância desesperada. “Janis” não detalha a trajetória da garota do Texas que morreu aos 27 anos de overdose. Os fatos estão lá, contidos por narrativa que os relembram para transmitir sentimentos fugazes de quem encontrou na música o oxigênio para se manter respirando o mundo. São sopros ofegantes de sonoridade rasgada com que o texto modela os contornos das vulnerabilidades e impulsiona a fúria musical. O diretor Sérgio Módena acomodou a duplicidade de fôlegos em um mesmo compasso ritmado de conversa direta com a plateia, deslocando ao primeiro plano, a encenação da música. Se o autor procurou a integração dos extremos, a direção setorizou palavra e canto. Nada que atingisse a qualidade da direção musical de Ricco Viana e o poderoso som da banda formada por Antônio Van Ahn (teclado), Eduardo Rorato (bateria), Gilson Freitas (saxofone), Marcelo Müller (contrabaixo), e destaque para Artur Martau (guitarra). No centro da alta qualidade musical está Carol Fazu, que interpreta Janis Joplin numa extensão de corpo e voz que alcança a alma e a emoção daquela que a atriz define tão precisamente como personagem. Não são os adereços e a caracterização de figurino. Muito menos qualquer vaga lembrança mimética ou maneirismos vocais reprodutivos. Apenas uma intérprete, evocando com sua atuação, uma figura real, de viva presença imagética e de culto de geração. Carol Fazu se revela segura e íntegra na projeção de uma Janis com quem parecer ter intimidade e reverente convivência.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (23/6/2017)

Crítica/ “Programa Pentesiléia – Treinamento para a batalha final” 
O feminino em luta de amor e ódio

A Pentesiléia que surge da dramaturgia de Lina Prosa é a mesma fogosa amazona que vive uma paixão com o  inimigo Aquiles, na preparação de uma batalha em que a castração masculina e a virulência feminina se confrontam como símbolos de forças de gênero e de sentimentos em estado de atração e repulsa. Tróia como lugar da luta e o tempo de uma Grécia filosófica são cenários de evocação desta tragédia pós-moderna da autora italiana, que refaz a fúria da mulher que deseja dissolver o homem dentro de si, e devorar, como um verme, as suas vísceras. As palavras, amorosas e violentas, tomam corpo, vigoroso e destruído, para contar a saga de sentimentos que se desfazem nas suas próprias contradições. Com direção de Maria Thaís do Teatro Balagan, “Programa Pentesiléia – Treinamento para a batalha final” é determinada pela estética e coerência da companhia paulista com linha investigativa que se atualiza em narrativas clássicas, mitos e signos antropológicos, ritualizados em ação física. Nas citações do texto a ambientes de confinamento, a mulher se encaminha para o fim em duas fases de sua imprecação, enquanto o homem, em locução única, aniquila os despojos do feminino. Em monólogos em que o choque se realiza no que é dito, o físico, tão essencial na criação do Balagan, se mantém em escala descontínua. Cama de hospital-maca-trono, dispositivo cênico de Márcio Medina que conduz o discurso e contracena com os atores, é um ponto referencial da narrativa, ao ser usado como extensão corporal. Tecido com desenho indígena veste a atriz em citação que perpetua a guerreira até a morte. São elementos retirados do acervo cênico do grupo, amplamente explorados em outras montagens. Na atual, fica mantido o estilo, mas descontínua a realização. A diretora, sempre firme e ciosa de suas proposições, não estende seus códigos para muito além de suas ideias, o que torna difícil decifrá-los como explicitação de conceitos. No casal de atores, evidencia-se o a concentração de sinais cifrados que não se fundem em cena. Antonio Salvador, ator da Balagan, decodifica bem melhor as intenções de sua interpretação. Performático no corpo e autoritário na voz, Salvador deixa entrever um Aquiles possível de comunicar. Maria Esmeralda Forte, represada em exigências corporais, regularmente cumpridas, contrai a variação de vozes de Pentesiléia.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Temporada 2017

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (21/6/2017)

Crítica/ “Monólogo público"
Um monólogo de foco duplo


Já no título, o espetáculo-performance-plástico-teatral-biográfico de Michel Melamed aponta para o jogo dos contrários no qual expõe a sua perspectiva de viver agora a urgência atual dos contraditórios. O que se imagina pessoal, se confunde com o geral, e se misturam em fronteiras cada vez mais estreitas, que provocam uma fala truncada, impessoal e mimeticamente repetida. As vivências, como atitudes, e a arte, como retrato, são expostas em linguagens múltiplas e dispersivas, que se desencontram para formar ação híbrida e movimento estático. O autor, diretor e ator concentra em si o papel de confrontar sua intimidade com personagens do mundo, transformando o desempenho em variados modos de contar-se no cenário caótico do momento. Partido em dois, usa a palavra com um tom casual, para em seguida repeti-la em outro registro, saltando do solo para a altura de uma compacta estrutura de madeira. O que é dito de um lado, é ampliado de outro, por vozes que se desmentem ou complementam, em malabarismo de locução de recital egocêntrico. O próprio Melamed propõe a autocrítica de sua atuação, mas a interferência do público está  limitada pela valorização do privado, eixo de pretendida radicalidade que se revela um discurso autorreferente. Em obra tão conceitual, a teatralidade ganha aparato que confunde mais do que expressa. A iluminação de Adriana Ortiz, que tem diálogo quase físico com o ator, é tão onipotente quanto a cenografia de Sérgio Marimba. O enorme tablado-muro-escultura contracena com o intérprete, exigindo que o ator manipule o dispositivo pesado, com pouco efeito plástico, provocando desvio e desconcentração do olhar. A agilidade de Michel Melamed, corresponde ao excelente preparo físico e vocal, que demonstra na maratona de pulos e sonorizações, como o criador multifuncional experimenta possibilidades de pensamentos livres e soltos.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (14/6/2017)

Crítica/ “Holywood”           
Mamet em estilo luta livre

A dramaturgia de David Mamet, como em bons roteiros de cinema, cria situação central forte, que se desdobra em diálogos inteligentes e resulta em entrecho que instiga os rumos de seu desfecho. Mais do que fórmula eficiente de técnica de escrita, as narrativas do autor conduzem o espectador a se situar em meio a contrastante argumentação e reações psicológicas aos conflitos. Mamet em seus textos teatrais, coloca em perspectiva questões adjacentes às disfunções da sociedade americana, em copiosos confrontos verbais, que atribui caráter de interlocução intensa à tramas realistas.  Em “Holywood”, essas características estão mantidas, ainda que em plano menos  expressivo e com menor ajuste dramático. O que enfraquece o embate de dois executivos da indústria de cinema que têm na secretária o desequilíbrio no projeto de um filme, é a dispersão entre a escala de ambições e o retrato de negócio de ética maleável. Com excessivo palavreado e muita reiteração, as críticas aos mecanismos que movem os personagens têm o alcance de ação novelesca, em que prevalece a exibição de atitudes, sem marcar o ritmo interno das suas motivações. A verbosidade não esconde a maneira redutora como se desenrola jogo fraudado de caso de sexo dissimulado. Os atritos do trio ficam dispersos pelo que é, essencialmente, o eixo da trama: o desvendamento de uma mentira. Gustavo Paso desconsiderou essa centralidade, investindo no desenho, quase farsesco, de executivos falastrões. Caracterizada como figuras estereotipadas da fábrica de ilusões, a dupla não sustenta as ironias e as dúvidas desconcertantes que outros e melhores textos de Mamet revelam em  maior extensão. O diretor transforma o choque de aspirações liquefeitas em luta livre de falas exaltadas. Os atores se digladiam em corpo a corpo ensaiado, ocupando um rinque que não demonstra ambientar impulsos verdadeiros. Artificiais e coreografados, os gestos sublinham uma dramática física, com limitada correspondência a real pulsão cênica. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros tira o melhor partido da frontalidade do arranjo cenográfico. Claudio Daniel mantêm, desde a primeira cena, altitude interpretativa que não permite que o executivo, um tanto ingênuo para exercer cargo tão competitivo, disfarçar a precária construção do personagem. Ricardo Pereira, em tonalidade ainda mais estridente que seu companheiro de elenco, faz do palco, espaço de exposição para boxer de invejável resistência física. Luciana Fávero, em registro contido e ambíguo, supera os traços mal alinhavados que estão na origem da astuciosa secretária.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (7/6/2017)

Crítica/ “Ivanov”
Tchecov superexposto

O teatro de Anton Tchecov apreende mundos em declínio. Desejos sempre adiados se misturam a tédios impenetráveis, que desaguam em determinismos trágicos e continuidades sufocantes. Não há lugar possível para se viver, apenas escaninhos que acomodam mal frustações e perda das vontades, cenário de natureza prestes a ser abatida e de temores calados pelas incertezas sociais. Um quadro exposto de arestas e pontos de atrito que arranham sentimentos voláteis, inexplicáveis a cada tentativa de justificá-los, e que ganham realidade na inconsequência das atitudes. Os personagens tchecovianos são incompletos em seus atos, e se tocam por entre ligações movidas por interioridades, que nem sempre demonstram o que, verdadeiramente, sentem. Em diálogos entrecortados, reproduzem os embates que os aflige na frustrada tentativa de alcançar ou negar o outro. “Ivanov”, o primeiro texto longo do autor russo, traz as melhores qualidades de suas obras mais ambiciosas (“A gaivota”, “As três irmãs”, e “Tio Vânia”), e antecipa a delicadeza agreste com que se debruça sobre a melancolia provinciana. Ary Coslov evitou qualquer ruptura na sua montagem, mas quebrou a escala narrativa ao fixar os gestos e antecipar cenas futuras, com a presença do elenco na abertura. No tablado, no centro do palco, os atores definem o estilo interpretativo e o caráter de representação que o diretor imprime ao espetáculo. Está se construindo uma encenação, na qual se pretende sublinhar o detalhe. Coslov amplia os desvãos onde estão os personagens, preferindo a amplitude das emoções que os impulsiona,  evidenciando a sua exterioridade. A superfície é visível. A contraluz, apagada. Marcos Flaksman busca na cenografia realçar, mais do que evocar. As projeções ambientam com pouca envolvência, que a iluminação de Aurélio de Simnoni compensa com focos filtrados. Os figurinos femininos de Beth Flipecki  se destacam pelo desenho e boa execução. O elenco corresponde ao tom mais expansivo e aparente proposto aos personagens. Mario Borges nivela a sua atuação, por conta da verbosidade de Micha, o bêbado faz-tudo,  à energia física. Isio Ghelman equilibra, com distanciamento e ar ausente, o sombreado tédio de Ivanov. Bela e elegante como a frágil Ana Petróvna, Sheron Menezes está menos segura na última cena, sem força capaz de projetar trecho de “Tio Vânia. Mayara Travassos agarra o papel com a mesma impetuosidade de Sacha. Marcio Vito confere excessiva naturalidade ao proprietário Pacha, enquanto Marcelo Aquino é um acanhado e tímido médico apaixonado pela doente.