domingo, 2 de julho de 2023

"A Cerimônia do Adeus"

Sérgio Britto e Natalia Thimberg, direção de Paulo Mamede (1987) 

No livro “A Cerimônia do Adeus”, Simone de Beauvoir registra os últimos dez anos de vida de Jean–Paul Sartre, em acerto de contas de convivência intensa. No texto de Mauro Rasi, o mesmo título adquire significado de acerto de contas consigo mesmo, A cerimônia dramatúrgica é o rito de passagem do jovem Juliano. De volta à cidade do interior paulista, de onde saiu com pouco mais de vinte anos, Juliano revive o cotidiano doméstico da mãe oprimida e limitada pela rotina e vivência provinciana, que à época, já se desenhava obscurantista no país. O descompasso existencial com o real, acirra no jovem o desejo difuso de rompimentos, de criar em plano delirante o que pela ação parece inalcançável. O personagem reinventa aquilo que hostiliza sua sensibilidade, encontrando nos livros, a evasão que se assemelha a liberdade. “Só há duas decisões - diz Juliano -: submeter-se ou usar a sua imaginação.” No secretismo do seu quarto, dialoga com o casal Sartre-Simone como livros-companheiros, a quem expõe angústias e fragilidades. É a invenção que torna aceitável os pais verdadeiros e a fantasia que justifica a redenção da mentira. O personagem, alter ego do autor, assinalou reviravolta na carreira de Rasi, estreando a trajetória definitiva e marcante da sua dramaturgia “biográfica”, a partir de então (1987). Abandona, e faz questão de renegar a produção anterior, que não queria que esta essa estreia, fosse vinculada à sua “dramaturgia “besteirol”. “A Cerimônia do Adeus” inauguraria nova fase, antecipando tias e outras membros da família, e memórias redivivas num universo teatral com assinatura grifada. O que não mudaria, até a última peça em 2003, ano de sua morte, foi o humor, traço pessoal de fidelidade à tradição da comédia de costumes brasileira. Apesar do indisfarçável tom confessional, a sua construção dramatúrgica tem a medida para alcançar efeitos bem afiados. A criação de Simone e Sartre como personagens vivos, com os quais Juliano convive na área libertadora do quarto, não é somente um achado/truque, mas uma plot/cena do casal, que vai-se explicando, com humor sutil, desenrolado fio narrativo entre real e imaginário. O arcabouço dramático, que contém muito de febre e delírio cômico, perpassa pelo poético, quando o texto arranha o afeto agridoce de Juliano por aqueles que estão à sua volta: por determinação ou escolha. A primeira versão da peça, em 1987 no Teatro dos Quatro, no Rio, direção de Paulo Mamede, harmonizava a imaginação do quarto-santuário e o espaço físico do conflito. Mauro Rasi recebeu o troféu de melhor autor de todas as premiações disponíveis (Molière e Mambembe), além da montagem receber outros dois destaque para Nathalia Thimberg (Simone) e Sergio Britto (Sartre). 

Eucir de Souza, Beth Goulart e Lucas Lentini , direção de Ulysses Cruz (2023)

Um ano depois, em nova montagem, agora em São Paulo, assinada por Ulysses Cruz, o espectador que assistiu a versão carioca, ficou surpreso com a visão paulistana. A plateia de lá, perguntaria a razão de tantos prêmios e o porque do reconhecimento do público de cá. Cruz não emitiu muitos sinais de identificação com o texto, reduzindo-o a crônica que esvaziava as  possibilidades evocativas em favor de uma supra realidade banalizada. Três décadas depois, Ulysses está de volta ao mesmo texto,  em montagem muito semelhante àquela que, originalmente, já demonstrava a pouco identidade no passado. Os desajustes da cena, na atual versão, se revelam, de início, pela  ausência de cenários. Os dispersos elementos (livros, teclado confinado no bastidor, vaso de samambaia, telão branco de fundo) e as portas laterais condenam a narrativa a um involuntário “vaudeville memorialista”, destruindo a convenção, rompendo com a chave básica da dramaturgia: o quarto de Juliano. É de onde a fantasia  se cria e é manipulada, desvendando o jogo dramático da existência física de Sartre e Simone. Para além desse espaço visualmente vazio e de pouca densidade como ambientação, as projeções são meramente ilustrativas e um tanto rebarbativas na conexão com a palavra. A linha interpretativa imposta ao elenco, apaga o humor do texto, nivela a trama numa corrente plana, e  reduz as características das personagens a desenhos borrados. Algumas intervenções desabilitam o arcabouço da montagem. A cena inicial é uma delas, como também o descompasso nas atuações do casal existencialista e da mãe Aspásia. O Juliano que aparece em cena, substitui o papel central de narrador pela função de figura secundária em constante e inútil troca de figurino.