Crítica/ “As
crianças"
O casal de cientistas aposentado, vivendo numa
região assolada por acidente nuclear, recebe a visita de uma amiga, ela também
cientista, depois de décadas de afastamento. O reencontro, estranho e cheio de
lacunas, evolui com a vulnerabilidade, física e emocional, do trio, que evoca o
passado de ressentimentos e dubiedades, tateando o futuro com data marcada para
o fim. O texto da inglesa Lucy Kirkwood, em cena no Teatro Poeira, segue a
linhagem da dramaturgia do seu conterrâneo Harold Pinter, na correspondência
com que retira do substrato do realismo, a essência da linguagem. A narrativa descreve
situações que podem justificar o comportamento dos personagens, mas que nem
sempre os conduzem ao que, aparentemente, é seu desdobramento. A ameaça nuclear
ronda a vida de pessoas, indiretamente responsáveis pelo desastre científico.
Em contraponto, são elas mesmas vítimas de enganos na sua existência, doentes
na escolha terminal do que ainda há para viver. O título, intrigante a
princípio, revela-se metáfora do tempo no significado de sua passagem, na
reiteração do seu prolongamento e na inexorabilidade da sua finitude, ao menos
para nós, humanos. O diretor Rodrigo Portella redimensiona a progressão cênica
no espaço abstrato, construído com imagens que sugerem e palavras que predizem.
As rubricas são anunciadas, quebrando a ação e quaisquer conotações realistas.
A cenografia delimita a área do jogo teatral como um playground recoberto de
pedras e de mobiliário básico em que sobressai um cavalinho de balanço. Há na
montagem acomodação, de suave perversidade, entre diálogos subtendidos e situações
dissonantes, ampliando a circulação desses planos em movimentos instigantes
(chupar pirulitos, segurar uma bola de gás) e em ritmo marcado por pausas e silêncios.
Portella determina a pulsação dramática no encontro de uma poética da finitude
com o tensionamento de conflitos subjetivos. Límpida, sem ênfases (a exceção é
o final em crescente arrebatamento), a encenação sincroniza a trilha original
de Marcelo H e Frederico com a iluminação de Paulo Cesar Medeiros. A preparação
corporal de Marcelo Aquino resulta na recriação de vagos gestos infantis. Texto
de ator, no rastro das interpretações no teatro inglês, “As crianças” oferece
ao elenco a oportunidade de estabelecer contracena em tríade, sem destaques ou
protagonismos. O que prevalece é o conjunto, e de como as peças se movimentam
no tabuleiro unificador. E Stella Freitas, Analu Prestes e Mario Borges jogam
como grupo coeso, numa frente única de atuações com passes precisos.