Negros no Centro da Cena
Crítica/ Negra
Felicidade
De volta para documentar o passado, fixando o olhar no presente |
Moacir Chaves, diretor de Negra Felicidade, em cartaz no Teatro Serrrador, constrói
provocante dramaturgia cênica para levar ao palco documento histórico do século
19, tornando-o material dramático capaz
de se sustentar como narrativa. Não é fácil, muito menos simples, fazer esse transporte da frigidez jurídica de um
processo, vazado em terminologia própria e com a
distância de quase dois séculos, para a linguagem teatral que a torne
factível como cena e da qual se extraia a indignação provocada pelo
divisionismo, preconceito e violência social. É posto para leitura dramática o
processo de 1870 da escrava Felicidade, que pleiteia a liberdade, que lhe é
concedida de maneira transversa, já que a sentença a obriga a trabalhar, ao
lado da mãe, por mais três anos para o mesmo senhor contra o qual foi à justiça.
O absurdo do veredicto fica exposto, ressaltado pela descrição dos meandros da
legislação que, pela forma como a justiça
é distribuída, como acusação ou defesa, revelando bem mais do que o sistema
político-social, escravocrata e democrático atual, pretenderiam que o fosse.
Talvez por essa razão, a dramaturgia de Chaves amplie o espectro do documento,
introduzindo, como quebras narrativas, o extraordinário Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do padre Antônio Vieira, trecho
retirado de peça de Tchecov e relatório numérico sobre a escravatura. A
estrutura narrativa, fria, expositiva, reveladora por si mesma, candente nas
entrelinhas, explosiva na indignação, é a própria encenação e daquilo que se
alimenta para se fazer teatro, sem o populismo da solidariedade de intenções
dirigidas e o protesto gerado pelo politicamente correto. A força do que é
dito, nos documentos e na sua transfiguração cênica, está no modo como se volta
ao passado para fixar o olhar no presente, na busca de formas não dramáticas
para impô-las como tal. A aridez linguística da documentação, em alguns
momentos, pode ressaltar a dificuldade de um ator em corporificá-la como interpretação,
o que acontece quando reduzida à mera explicitação da palavra, tornando a atuação
redundante. Mesmo que a direção intente manter a dinâmica em constante movimentação,
estilo (humor, leitura branca, ação subjetiva, emoção, racionalidade) e construção
de uma teatralidade a serviço da narrativa. De mais de uma dezena de atores da
companhia Alfândega 88, a maioria se mostra integrada ao espírito da montagem,
com destaque para a inteligência interpretativa de Elisa Pinheiro, a presença
do humor de Peter Boss, a emoção genuína de Edson Cardoso, e para as múltiplas
e precisas intervenções de Adriana Seiffert, Mariana Guimarães, Fernando Lopes
Lima, Renata Guida, Leonardo Hinckel, Diego Molina, Andy Gercker, Danielle
Martins de Farias, Pâmela Coto e Rita Fisher. A sutil solução cenográfica de
Fernando Mello da Costa e a música de Tato Taborda complementam essa montagem,
aparentemente de recepção menos fácil,
mas suficientemente envolvente para trazer o espectador aos porões da
intolerância, conduzindo-o por trilhas teatrais que iluminam o esquecido e para
o situar naquilo que não quer lembrar.
Crítica/ Namíbia,
Não!
Recusa de regressar a uma mentira histórica |
O texto de Aldri Anunciação, em cartaz no Teatro
Glauce Rocha, trata do preconceito, por quem o sofre e de dentro de quem o
camufla. Escrito com humor, que se utiliza das relações que a sociedade
brasileira mantém com o negro, desde a época escravocrata até as suas
derivações hoje, a narrativa se situa em 2016, quando decreto governamental
obriga cidadãos de “melanina acentuada” a voltar para a África. A desculpa é a
de corrigir “erro histórico” e devolver os descendentes de escravos às suas
origens, repondo, deste modo, a dívida social, rifando-os. Esse ponto de
partida da trama de Anunciação é tanto mais provocativa quanto põe frente a
frente, dois personagens negros socialmente bem situados que se vêem
confrontados com a interrupção de suas vidas no país de nascimento, cidadania,
identidade e cultura. Como não podem ser capturados dentro de suas casas,
afinal, preceito jurídico que deve ser respeitado, proibe invasão de domicílio,
serão detidos ao saírem às ruas e exportados para, por exemplo, Namíbia. Mas não,
não querem ir para lá, nada há por aquelas terras que os faça lembrar o que
são. Aqui é o seu lugar, tão deles quanto de quaisquer outros vindos de onde
vierem. É com esta desarrumação identitária que o autor brinca com a platéia sobre o que pensar sobre as questões sociais
envolvidas por temas propostos por “leis afirmativas” e em torno da introjeção
e acúmulo de intolerância histórica. Se de início, o texto é instigante, o seu desenvolvimento,
no entanto, se revela convencional, evidenciando relativa perda de seu domínio pelo
autor. Há um excesso nos diálogos, que em certa medida, os fazem repetitivos, não
permitindo que a ação avance com maior fluência. O tom verborrágico e a
tendência ao discursivo desviam, parcialmente, a condução do humor, deixando
que se interponha alguma sisudez, que
se mostra fora de lugar, se comparada à idéia original da trama. Lázaro Ramos
assina a direção, dando aos atores a prevalência no desenho da montagem. Com
cenário de Rodrigo Grota, que sugere pouco a sensação de confinamento, e
iluminação de Jorginho de Carvalho, o espetáculo tem em Flávio Bauraqui um ator
que confere característica de comediante ao
personagem, enquanto Aldri Anunciação tensiona bem mais o seu estudante postulante
a um lugar no Instituto Rio Branco.