Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (19/7/2015)
Crítica/ “Killer
Joe”
A violência fronteiriça da banalidade |
O texto de Tracy Letts, que se imagina mergulhar
na América profunda, com seus outsiders
encharcados de cerveja e desvios morais, é pouco mais do que um tiro de festim,
prosaicamente diabólico e sem mira, em pretenso alvo provocativo. Um matador de
aluguel é contratado por um homem para matar sua mãe, e assim receber o seguro
e pagar dívida com traficantes. Toda a sua família é envolvida na trama, com
direito a insinuações de desejo entre irmãos, mútuas traições e inescrupulosas emoções
fronteiriças. O plano não dá certo, mas já de início se percebe o fracasso na construção
dos personagens, fantoches a serviço da ação direta sobre um painel esquemático
de violência. Letts investe na moldura que delimita o efeito, tornando
mecânicas as figuras que movimentam o quadro. Esse retrato realista na
aparência de verdade e acintoso na indução à repulsa, se desfaz no
comportamento daqueles que o autor pretende representar como expressão do mal ao
igualá-los na miséria humana. Antes de ser o drama psicológico que o roteiro gostaria
de ser, “Killer Joe” se assemelha a pastiche involuntário de um “grand-guignol”
(espetáculo caracterizado pelo bizarro com pretensão a criar pânico e horror).
Mário Bortolotto, fiel à sua dramaturgia e carreira como encenador, está
bastante à vontade para transpor ao palco esta narrativa, em tradução de
Maurício Arruda Mendonça, com interpretações intensas e imagens brutalizadas. O
diretor não economiza na crueza verbal e destempero físico para ampliar um
pouco mais as fronteiras da indisfarçável misoginia e fúria empostada do autor.
Sob a perspectiva da coerência e identidade, Bortolotto segue, em mais esta
montagem, a mesma trilha das fotográficas provocações cênicas que realiza com seu grupo Cemitério de
Automóveis em São Paulo. Desta vez, há um cuidado maior com a cenografia, assinada por Mariko e Seiji
Ogana, que reproduz com alguma atmosfera o ambiente de um trailer. A
sonoplastia e inserções sonoras, além dos efeitos especiais e coreografia das
lutas, revelam um acabamento apreciável, que nem sempre se encontra na
trajetória de Bertolotto. O maior destaque da direção recai sobre o trabalho do
coeso e integrado do elenco. Fernão Lacerda reproduz a tibieza do chefe da
família com convincente hesitação. Gabriel Pinheiro mantém o filho em nível de
tensão alto. Ana Hartmann compõe a filha emocionalmente frágil com toques de
perversidade. Carcarah, o assassino de aluguel, conduz com cinismo a escalada
da violência. Aline Abovsky impressiona pela preparação para a cena em que a
amante é humilhada.