quarta-feira, 1 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (1/7/2015)

Crítica/ “Beija-me como nos livros”
As palavras roubadas do amor

O amor romântico adquire expressões próprias no campo literário ao criar casais míticos que mantêm, ao longo do tempo, a mesma pulsão para o encontro. As palavras que contam dos ritos de aproximação e afastamento, do êxtase e do trágico, da paixão e da rotina, se tornam candentes ou poéticas na permanente busca de duplicar a si mesmo em outro. É um percurso em que diferenças nem sempre são conflitos e desejos impossibilidades. Ivan Sugahara reuniu mitos amorosos, do período medieval  ao romantismo alemão, em paralelo a trama contemporânea, para espreitar o mistério do embate pela completude inalcançável. O diretor e dramaturgo percorreu dos contos celtas que criaram “Tristão e Isolda” ao amor juvenil de “Romeu e Julieta”, se estendendo a sedução de “Don Juan” e a frustração de “Werther”, tendo com fio narrativo caso amoroso de nossos dias. A concepção desta cena tão enraizada na literatura se baseia na palavra como ruído e no movimento como sentido. Não há qualquer diálogo que reproduza os originais, mas um idioma inventado, que evoca alguma língua de sonoridade neutra. A vocalização padronizada encontra complemento no gesto de alcance amplo, que sustenta a ação e informa a fala. Um tanto contraditória como narrativa na relação voz e corpo, “Beija-me como nos livros” utiliza ainda recursos de manipulação de imagem como rewind e fast forward para avançar ou retroceder os quadros, provocando efeito mais brincalhão do que efetivamente cênico. Em alguns momentos, em que os personagens atuam em planos temporais alternados, e em vários deles há que definir maior carga dramática, a movimentação dos atores relembra a comicidade de “Irma Vap” e o entra-e-sai de um vaudeville. Ao que parece, o diretor pretendeu estabelecer esses contrastes entre linguagens e estilos, que até se concretizam, mas que ficam frágeis pela recorrência e abuso do código. Som e imagem quando escapam ao foco, deixam a palavra monótona e a exposição confusa. Quando os dois polos se realizam, como na construção engenhosa e de voltagem dramática da cena final, a montagem alcança a sua melhor realização. A direção de movimento e preparação corporal de Duda Maia, e a direção vocal e pesquisa fonética de Ricardo Góes são essenciais e funcionam como verdadeira codireção com Ivan Sugahara. Os gestos obedecem a um coordenado balé de mãos, enquanto o idioma híbrido soa com sotaque longínquo da nacionalidade de cada casal. O elenco consta na ficha técnica como participante da criação dramatúrgica, o que se evidencia no palco pela sincronizada adesão a essa dança romântica de palavras roubadas. Ângela Câmara, Claudia Mele, José Karini e Julio Adrião se entregam, como bailarinos cúmplices, a infindável tentativa de investigar o amor.