Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (22/7/2015)
Crítica/ “Domando
a megera”
A comédia de Shakespeare, que submete a irascível
Catarina à truculência disciplinadora de Petrucchio, é interpretada, muitas
vezes ao longo dos cinco séculos desse embate entre língua ferina e mão pesada,
como demonstração masculina de poder. O grupo Nós do Morro desconfia que a
megera foi domada pelo machismo, ao ponto de revelar dúvidas que justifiquem
sua encenação e um quase pedido de desculpas para o fazer. O tradutor e
adaptador Luiz Paulo Corrêa e Castro e o diretor Fernando Mello da Costa adotam,
cenicamente, posição de desconfiança em relação às atitudes do pretendente à mão
da jovem, deixando evidente, em pelo menos dois momentos, a extensão de suas suspeitas.
Talvez para criticar a possível incorreção política shakespereana, a trama seja
duplicada por atores que conduzem a ação e por palhaços que mimetizam a representação
convencional. É uma possibilidade de atenuar as indecisões e saída para
encontrar a expressão atualizada de um clássico. Com trilha original e arranjos
de Gabriel Moura, a montagem expande, no namoro com o musical, a intenção de se comunicar mais diretamente e
de forma popular com variadas plateias. O que não deixa de funcionar pela
dinâmica que os dois planos narrativos impõem com seus ritmos e linguagens próprios.
O dispositivo cenográfico de Fernando Mello da Costa, um tablado com anteparo,
atende à funcionalidade dos quadros duplos, em contraste com a rusticidade da madeira. Renato Machado
confere luminosidade expandida ao espaço. O figurino de Kika Medina é um tanto
irregular na profusão de estilos das múltiplas roupas. A preparação corporal,
direção de movimentos e coreografias de Marcia Rubin são parcialmente
executadas pelo elenco, que mostra alguma rigidez no desenho dos gestos. A
pouca intimidade com o canto leva as vozes claudicantes dos atores a tornar inexpressiva a difícil partitura. Nem
sempre o dinamismo que o diretor imprime à ação dos intérpretes em contraponto a
dos clowns funciona de modo unívoco como
diálogo de atuações e paralelismo de contrastes. As quebras narrativas provocam
fracionamento na evolução do entrecho, desequilibrando cada um dos planos,
ameaçados de ganhar autonomia e independência entre eles. A dificuldade de
integração é ainda mais evidente nas distinções no elenco. A equipe dos clowns se expõe com os sinais enfaticamente
trocados de seu código silenciado, enquanto os demais atores, em dissonância
com a riqueza da palavra, parecem tentar dissimular o seu real sentido. Os 26
atores e três músicos desempenham seus papéis com a disciplina de um coletivo,
que tem em Melissa Arievo (Catarina) e Marcelo Mello (Petrucchio) os destaques
pelo protagonismo e Hugo Alves (Grumio) pela figura cômica.