quinta-feira, 30 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/4/2015)

Crítica/ Meu Saba
O caminho tortuoso do afeto e da paz

Meu Saba é a transposição do livro Em Nome da Dor e da Esperança, de Noa Ben-Artzi-Pelossof, neta do primeiro ministro de Israel Yitzhak Rabin, morto a tiros, em 1995, por um radical contrário às negociações de paz com a Palestina. A ação se concentra entre o percurso, físico e emocional, de Noa até o púlpito, de onde falará em homenagem à memória do avô, e o tempo, real e interior, que relembra o estadista e o afetuoso saba. A tensão que se estabelece entre os acontecimentos que envolvem o político e as lembranças do parente está no centro da adaptação ao monólogo pela atriz Clarissa Kahane, a autora Evelyn Dizitzer e o diretor Daniel Herz. Há equilíbrio narrativo dos dois planos que, em permanente contracena, transitam da aridez espacial dos fatos à contraída emoção temporal, diante das quais Noa percorre seu afeto, e desabafa sua indignação. Na voragem dos sentimentos em estado de ebulição, os movimentos interiores são lentos e firmes, na certeza da necessidade de paz, e na sobrevivência ao sofrimento da perda. A montagem de Daniel Herz trata esse universo político-afetivo com extrema sensibilidade, traduzindo as dualidades do texto, dissociando a unidade narrativa de tempo e espaço, a partir do diálogo atritado entre ambos. Os dois momentos se contrapõem em cortes nos passos da caminhada retilínea, e na edição da linearidade das emoções. Herz articula as variantes dramáticas como uma trilha a seguir, balanceada pelos absurdos da política e a irreconciliável racionalidade das sensações, contrastando a jornada com juízo, o andar com entrave. A concepção do diretor encontrou correspondência nos elementos visuais e sonoros que ambientam de modo vigoroso a encenação. A cenografia de Bia Junqueira constrói uma via de tijolos vazados que conduz, numa distância terrosa e desértica até ao palanque de onde a personagem fala em simbólico microfone. A luz de Aurélio Di Simoni é mais do que acessória no percurso elaborado pelo diretor e cenógrafa, mas participante ativa na efetiva criação de linguagem integrada e coesa. A música de Antonio Saraiva adquire efeito dramático de uma partitura composta no ritmo da sonoridade de intervenção. As qualidades técnicas e a força da palavra neste monólogo de impacto emocional e ressonância reflexiva, se reduz, contraditoriamente, pela presença da única intérprete. Clarissa Kahane, quem se empenhou para a adaptação do livro e se comprometeu com adesão irrestrita ao projeto, transmite esse compromisso com inegável sinceridade, mas sem os meios interpretativos que alcancem sua ambição. As exigências de transmitir a dor da neta e a desesperança da judia (“ele foi assassinado por um dos nossos”) inibem a atriz, presa às marcas e inflexível nas passagens de tempo e espaço.                 

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Antonio Abujamra


A cena do exercício de provocação
Antonio Abujamra exercia seu humor caustico e provocativo em programa de televisão, nas entrevistas e, invariavelmente, no teatro. É dele a irreverente denominação do jovem grupo que comandou por anos e que recebeu o incitante aposto de Os Fodidos Privilegiados. Essa marca de personagem construído e bufão verbal, que destrava preconceitos e afrontava os bem-pensantes, ofuscava sua persona artística, ele que vivenciou experiências com Roger Planchon e o Théâtre National Populaire, estagiou no Berliner Ensemble, absorvendo com seu ceticismo de inveterado jogador, teorias que viria aplicar ao longo de seis décadas de carreira. O repertório de diretor, desde os anos 1960, conjugava a valorização da dramaturgia com rupturas formais no acabamento. Circulando nas suas primeiras investidas por autores identificados politicamente, é no grupo Decisão que amplia a escolha por um teatro de intervenção social, montando Brecht e transportando para Sorocaba a “Fuenteovejuna” de Lope de Vega. Mas sempre na contramão, Abujamra encena, em plena efervescência de 1964,  O inoportuno, de Harold Pinter, então considerado um autor do absurdo e de temática alienante. E submete, em eclética fricção dos meios expressivos, o ritualismo de Sófocles, o classicismo de Lorca e Shakespeare, e a vida como ela é de Nelson Rodrigues. A montagem de “Um certo Hamlet”, que subverteria o personagem shakespeariana em 1991, dá a medida de um diretor petulante em confronto com a sacralidade do mito. Fazia questão de chocar, de provocar reações pelo exagero, sem qualquer pudor em ser vulgar até o limite da banalidade. O temperamento do frasista irremediável permitia que em suas encenações convivessem, algumas vezes em ultrajante humor, o profano e o perverso, para não deixar qualquer dúvida na plateia de quem ou contra o que estava sugerindo repulsa ou adesão. Em 1987, retomou sua carreira de ator no teatro no solo “O contrabaixo”, que permaneceu anos em cartaz, e que se transformaria em “cavalo de batalha” de um intérprete de humor inteligente, que impulsionava o personagem, fora e dentro de cena.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/4/2015)

Crítica/ Através do Espelho
"Espelho" sem reflexos de atmosfera bergminiana

Baseada em filme de Ingmar Bergman, a versão cênica de “Através do espelho” se distancia do universo do autor, quanto mais deseja captura-lo. A família, que se reúne no verão sueco para encontro em que expectativas são frustradas a cada embate, tem em Karin o eixo deflagrador dos conflitos. Em permanente estado de suspensão, marcada pela morte da mãe e ausência do pai, um escritor medíocre, vive um casamento frustrado com Martin, um homem compreensivo, mas incapaz de ajudá-la. Com o irmão, Max, mantém a tensão no limite transgressor, e é quem provoca o colapso definitivo na sua instabilidade emocional. Esse quadro tensionado  é permeado por desenhos psicológicos típicos da configuração dramática de Bergman. Não é o melhor filme do cineasta sueco e seu desdobramento no palco procura não desfavorecê-lo na transposição. As narrativas de Bergman são apoiadas na interioridade dos personagens e na difícil convivência entre eles, em que o mundo real transforma-se numa ilha de desencontros, fustigada por ondas de incompreensão. Esse universo está intacto na dramaturgia, adaptação e tradução por que passou até a encenação de Ulysses Cruz, aproximando o original mais de ajustes do que de interferências perturbadoras. A montagem, no entanto, desintegra a unidade dramática, identificando ação e trama como linha condutora determinante. O realismo se sobrepõe a quaisquer contrastes e mediações nas atitudes familiares irreconciliáveis com a delirante perda emocional de Karin. A quebra do sentido de realidade, que se manifesta não apenas pela dissociação afetiva, mas também por vozes internas que soam dissonantes, se torna literal, confinada em palavras e gestos que ficam expostos e despojados de suas motivações. A possibilidade estabelecer atmosfera de entrechoque dos sentimentos e adensamento do clima de ruptura, se contrai pelo monocromático desenho das interpretações, que seguem um mesmo e ordenado traço nivelador. O cenário frio de Lu Bueno é aquecido pelas luminárias de gravetos com algum efeito na ambientação. A trilha sonora de Daniel Maia tenta sublinhar, artificialmente, as cenas que imagina de maior tensão. O elenco se ressente da uniformidade que pretende equalizar as atuações, provocando efeito contrário, com cada ator adotando caráter psicológico exteriorizado para seus personagens. Tal opção é mais visível nos atores – Lucas Lentini, Joca Andreazza e Marcosa Suchara – do que na atriz Gabriela Duarte. Disciplinada no empenho de encontrar a correção, Gabriela Duarte transita, perifericamente, com docilidade vocal e presença contida, pelos conflitos da Karin.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/4/2015)

Crítica/ Contra o Vento (um musicaos)
Os ventos tropicalistas entre o caos da Fossa

Se outros méritos não tivesse, o “musicaos” de Daniela Pereira de Carvalho, ao menos deixa a certeza de que houve a tentativa de representação de uma época e de uma geração artística integradas à linguagem do gênero. Fato raro, tanto que é necessário destacá-lo, a trilha sonora de Felipe Vidal e Luciano Moreira foi composta, integralmente, para a montagem, com músicas originais, e apenas citações ou trechos de canções do período. São  qualidades  a serem valorizadas em meio a tantos musicais mal biografados e de repertório preguiçoso, que se sucedem em produções burocráticas. “Contra o vento” é ambientado no Solar da Fossa, casarão na entrada do Túnel Novo, onde hoje existe um shopping, e que nos anos 60 abrigou postulantes a cantores, compositores, poetas, cineastas e alguns desgarrados que experimentavam um clima libertário e ensaiavam movimentos de contracultura.  Os moradores (Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Zé Keti, Darlene Glória, Tim Maia, entre tantos outros), acompanharam como testemunhas ou vítimas o crescente endurecimento da ditadura, e foram espectadores ou criadores da efervescência de um novo caldo cultural. Nos quartos dessa construção do início do século passado, numa área ainda baldia de Botafogo, gestavam-se comportamentos e delineavam-se inovações, que desaguariam na ebulição tropicalista. O “musicaos” (referência ao  artista gráfico baiano Rogério Duarte, criador do cartaz do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e autor do livro “Tropicaos”) procura redimensionar o espírito de um tempo e capturar a poética anárquica de artistas em estado bruto. É um desafio bastante ousado, que a autora enfrenta com indisfarçável volume de pesquisa e sensível perspectiva cultural, além de, formalmente, arriscar o enquadramento do “caos” aos estatutos dos musicais. Fugindo de cronologias e das situações em sequência, Daniela Pereira dividiu o texto em três partes, entre os anos de 1967 e 1969, em meses desordenados, e sugerindo aos espectadores, antes do início do espetáculo, que decidam a ordem de apresentação. Desta forma, compromete a plateia com a estrutura desconexa de tempo  e com a visão anti-realista de cada quadro. Ainda que tal composição dramatúrgica seja atraente e provocante para a convenção dos musicais, ainda paga tributo ao apelo à trama e situações evolutivas. A dramaturgia de maior impacto e de efeito cênico mais envolvente está na trilha de Felipe Vidal e Luciano Moreira. Em 13 composições originais em que citações incidentais de compositores populares e escritores eruditos se desdobram em letras de inspiração tropicalista e força poética, estabelece narrativa musical, que em paralelo a comentar a ação, ganha autonomia sonora no lirismo e contundência de letras e música. A registrar, a provocação de “Frente pluripansexual”, a beleza de “Tema de Ana”, o tropicalismo de “Portas abertas” e “O meu lugar é aqui”, e o psicodelismo de “Cabeça mate”. A montagem de Felipe Vidal reproduz uma partitura cênica de inspiração tropicalista. São imagens que sugerem a capa do disco “Tropicália” e reveem a cena de abertura do segundo ato de “O Rei da Vela” na encenação de José Celso Martinez Correa. Esses fragmentos visuais têm tratamento dramático, não evocativo, o que nem sempre o diretor consegue nas cenas mais descritivas. A caracterização do elenco, tanto no figurino quanto no incômodo uso de perucas, restringe a atuação ao esforço de se assemelhar à realidade. A cenografia de Aurora dos Campos e a iluminação de Tomás Ribas dão discreto relevo à ambientação. A vigorosa direção musical de Marcelo Alonso Neves se impõe ao coro de atores-cantores-instrumentistas em coletiva e harmoniosa sintonia.               

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/4/2015)

Crítica/ Closer – Perto Demais
Ciranda amorosa de individualidades

Closer é um exemplar típico da dramaturgia britânica dos anos 90, aquela que mede as temperaturas sociais e dos costumes, sob a perspectiva de uma sociedade sensível para estabelecer padrões de comportamento e flexível para rompê-los. Ainda que revestida do velho realismo, a narrativa de Patrick Marber se impõe pela fluidez e impessoalidade das relações marcadas por comunicação intensa em velocidade e nem sempre sustentável em conteúdo. Numa ciranda amorosa, stripper ama jornalista que, por sua vez, se enamora de fotógrafa, que é abandonada pelo companheiro, que se envolve com a stripper. Nesse carrossel, as trocas representam muito menos  quebra de convivência mas, essencialmente, trocas nervosas de vivências, demarcadas por afetos construídos em bases frágeis e zonas de sombras. Nenhum deles demonstra culpa em magoar o outro e nos movimentos de troca de par estão condenados a seguir, ou a desistir, da procura. Closer está longe de ser um texto excelente. No máximo, é hábil na construção bem armada de situações que se intercambiam no jogo das peças movidas pela necessidade da procura e das reações a perdas. Na sua estreia em Londres, em 1997, trazia novidade que se tornaria um atrativo sedutor para o público, e reforçaria o marketing publicitário para o espetáculo. Anunciava-se como uma montagem que utilizava, pela primeira vez, a comunicação via internet em cena. O que é verdade, mas apenas como um detalhe, hoje, e como na época, completamente, secundário. A adaptação e direção de Andrea Avancini retirou o caráter quase impessoal e atomizado dos contatos entre os personagens, para personalizar as ações. Com esta abordagem, o texto perde aquilo que o diferencia da ronda banal acionada pela dramaticidade dos sentimentos. Com cenário improvisado, iluminação inexpressiva e figurino convencional, a montagem tem na coreografia de Luhanna Melloni a agilidade que permite a intensa circulação dos atores, e na trilha original de Charles Kahn, a forma de sublinhar a evolução da trama. A agitação do quarteto de atores, que permite a ocupação das áreas do palco numa troca permanente de posições no espaço, não esconde a atuação fixada no rosto, em closes enfáticos. Rafael Sardão imprime nervosismo ao personagem,  ameaçando dissolvê-lo. Karen Motta se avizinha da ambiguidade da stripper. Paula Moreno e Luciano Szafir se apropriam sem variações de seus papéis.   

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/4/2015)

Crítica/ Infância, Tiros e Plumas
Corrida em busca do humor
Jô Bilac, autor desta comédia com crianças, estampidos e plumas metafóricas, empreende viagem que parte de um Brasil cheio de contradições e vícios, que pretende chegar ao mundo fantasiosamente perfeito de Disney. Já no aeroporto, os passageiros anunciam, com suas atitudes estranhas e bagagens suspeitas, as turbulências que viverão durante o voo. Menino de 4 anos, com forte sotaque espanhol e ainda usando chupeta, carrega droga na sua mochila, enquanto garoto de 9, assiste a disputa por sua guarda pelos pais neuróticos. O trio infantil fica completo com a menina de 8, filha de político e candidata a miss mirim. E mais o pessoal de bordo e um segurança partem em viagem delirante em que tiros sem mira abatem a possível crítica aos passageiros da nave louca brasileira. É possível perceber as intenções de Bilac em reunir nesse grupo desgarrado de atitudes éticas, o reflexo de esgarçamento social que assume proporções ilimitadas. O problema está na intensidade com que dosa humor e ação. Na narrativa predomina o desenvolvimento das cenas como sequência de situações, em detrimento dos  comentários que insinua inicialmente. A força do humor se perde, quando não, estaciona no plano do engraçadinho, sem atingir o nonsense e o tom crítico que a trama, potencialmente, poderia oferecer. A sucessão de clichês humorísticos e o descontrole narrativo conduzem muito mais o texto para as plumas do que para os demais substantivos do título. Inez Viana enfatizou as situações como o elemento estrutural da sua direção ágil, recorrendo a um formalismo visual que se realiza na cenografia e se estende à composição em quadro do elenco. A movimentação em grupo dos atores estabelece efeito seriado, com as figuras enfileiradas ou reunidas em corpo único, ocupando o espaço cênico num balé geométrico. O cenário de Mina Quental, com biombos móveis em vaga referência aos painéis de anúncio de voos, reforça a imagem de seriação e conjuga funcionalidade e ambientação. A iluminação de Renato Machado e Ana Luzia de Simoni está plenamente ajustada à concepção do cenário. A direção de movimento de Dani Amorim assume papel determinante na montagem, e a direção musical de Marcelo Alonso Neves é destaque pela sua precisa intervenção. O figurino de Felipe Braga aposta no previsível. Jefferson Scroeder investe no caricatural para o menino  inocente que transporta droga. Luis Antonio Fortes demonstra presença tímida como o garotinho em disputa pelos pais. Carolina Pismel, a pequena miss, se transforma numa máquina vocal, disparando absurdos, na melhor atuação em cena. Debora Lamm convence como a mãe histérica. Leonardo Brício se retrai como o médico. O segurança de Iano Salomão e a equipe de bordo – Juliane Bondini, Zé Wendell e Júnior Dantas – têm interpretações menos regulares.