Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (26/4/2015)
Crítica/ Através
do Espelho
Baseada em filme de Ingmar Bergman, a versão cênica
de “Através do espelho” se distancia do universo do autor, quanto mais deseja captura-lo.
A família, que se reúne no verão sueco para encontro em que expectativas são
frustradas a cada embate, tem em Karin o eixo deflagrador dos conflitos. Em
permanente estado de suspensão, marcada pela morte da mãe e ausência do pai, um
escritor medíocre, vive um casamento frustrado com Martin, um homem
compreensivo, mas incapaz de ajudá-la. Com o irmão, Max, mantém a tensão no
limite transgressor, e é quem provoca o colapso definitivo na sua instabilidade
emocional. Esse quadro tensionado é
permeado por desenhos psicológicos típicos da configuração dramática de
Bergman. Não é o melhor filme do cineasta sueco e seu desdobramento no palco procura
não desfavorecê-lo na transposição. As narrativas de Bergman são apoiadas na interioridade
dos personagens e na difícil convivência entre eles, em que o mundo real transforma-se
numa ilha de desencontros, fustigada por ondas de incompreensão. Esse universo
está intacto na dramaturgia, adaptação e tradução por que passou até a encenação
de Ulysses Cruz, aproximando o original mais de ajustes do que de interferências
perturbadoras. A montagem, no entanto, desintegra a unidade dramática,
identificando ação e trama como linha condutora determinante. O realismo se
sobrepõe a quaisquer contrastes e mediações nas atitudes familiares irreconciliáveis
com a delirante perda emocional de Karin. A quebra do sentido de realidade, que
se manifesta não apenas pela dissociação afetiva, mas também por vozes internas
que soam dissonantes, se torna literal, confinada em palavras e gestos que ficam
expostos e despojados de suas motivações. A possibilidade estabelecer atmosfera
de entrechoque dos sentimentos e adensamento do clima de ruptura, se contrai pelo
monocromático desenho das interpretações, que seguem um mesmo e ordenado traço
nivelador. O cenário frio de Lu Bueno é aquecido pelas luminárias de gravetos com
algum efeito na ambientação. A trilha sonora de Daniel Maia tenta sublinhar,
artificialmente, as cenas que imagina de maior tensão. O elenco se ressente da uniformidade
que pretende equalizar as atuações, provocando efeito contrário, com cada ator adotando
caráter psicológico exteriorizado para seus personagens. Tal opção é mais
visível nos atores – Lucas Lentini, Joca Andreazza e Marcosa Suchara – do que
na atriz Gabriela Duarte. Disciplinada no empenho de encontrar a correção,
Gabriela Duarte transita, perifericamente, com docilidade vocal e presença
contida, pelos conflitos da Karin.