Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (12/5/2015)
Crítica/ Madame
Bovary
Ao ser publicado em 1857, o romance de Gustave
Flaubert foi considerado um escândalo na França pelo seu caráter realista,
objeto de processo, ataques moralistas e de acusação de anátema religioso. Razões
para tanta reação se explicam pela desvendamento de sentimentos mesquinhos num
ambiente provinciano de mentiras, traições e desonestidades. Emma Bovary catalisa
com sua insatisfação a mediocridade e as ambições ordinárias à sua volta, pagando
com a vida a dívida contraída na paixão da recusa à estupidez. A trama, que
pode ser identificada à luz de referências atuais a um novelão de amplo
espectro de ganchos e intrigas, na
adaptação, tradução e direção (ao lado de Rafaela Amado) de Bruno Lara Resende,
é transposta como possibilidade cênica e exploração anti-realista e distanciada
da narrativa. Os personagens se recriam na forma como contam o que vivem, revisando
o plano literário com realidade teatral. A montagem se realiza pelo jogo de
expor e contar. Mais do que impor dramaticidade, encena uma linguagem. Os
atores são peças deste jogo e se movimentam articulados com a palavra romanceada,
não com o diálogo teatralizado. A cenografia de Marcelo Lipiani se restringe a
uma mesa que se integra à ação como elemento complementar da ativa troca de
cenas, mantidos os efeitos descritivos de cada uma delas. A iluminação de
Renato Machado preenche com as mudanças de cores no painel de fundo e
construção de áreas demarcadas, a amplitude do espaço de representação. A
música de Antonio Saraiva adensa o clima, e a direção de movimento de Marcia
Rubin colabora para o ritmo acentuado. Os cinco atores, alguns se multiplicando
em personagens, compõem um elenco coeso na proposta do diretor e na unidade estilística
das interpretações. Lourival Prudêncio, com maior facilidade em compor tipos,
deixa escapar, ao final, a crítica
candente de Flaubert. Vilma Melo, que se distribui por vários papéis, é uma voz
distinta no coro afinado das atuações. Joelson Medeiros imprime tensão corporal
para demonstrar a fragilidade do marido. Alcemar Vieira estabelece com o
distanciamento do comentário a existência dos seus personagens. Raquel Iantas,
talvez seja uma Madame Bovary menos arrebatada e conflituada, o que pode ser
atribuído à sua adesão ao caráter exploratório da linguagem do espetáculo e à tonalidade
coletiva das interpretações.