quarta-feira, 22 de abril de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/4/2015)

Crítica/ Contra o Vento (um musicaos)
Os ventos tropicalistas entre o caos da Fossa

Se outros méritos não tivesse, o “musicaos” de Daniela Pereira de Carvalho, ao menos deixa a certeza de que houve a tentativa de representação de uma época e de uma geração artística integradas à linguagem do gênero. Fato raro, tanto que é necessário destacá-lo, a trilha sonora de Felipe Vidal e Luciano Moreira foi composta, integralmente, para a montagem, com músicas originais, e apenas citações ou trechos de canções do período. São  qualidades  a serem valorizadas em meio a tantos musicais mal biografados e de repertório preguiçoso, que se sucedem em produções burocráticas. “Contra o vento” é ambientado no Solar da Fossa, casarão na entrada do Túnel Novo, onde hoje existe um shopping, e que nos anos 60 abrigou postulantes a cantores, compositores, poetas, cineastas e alguns desgarrados que experimentavam um clima libertário e ensaiavam movimentos de contracultura.  Os moradores (Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Zé Keti, Darlene Glória, Tim Maia, entre tantos outros), acompanharam como testemunhas ou vítimas o crescente endurecimento da ditadura, e foram espectadores ou criadores da efervescência de um novo caldo cultural. Nos quartos dessa construção do início do século passado, numa área ainda baldia de Botafogo, gestavam-se comportamentos e delineavam-se inovações, que desaguariam na ebulição tropicalista. O “musicaos” (referência ao  artista gráfico baiano Rogério Duarte, criador do cartaz do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e autor do livro “Tropicaos”) procura redimensionar o espírito de um tempo e capturar a poética anárquica de artistas em estado bruto. É um desafio bastante ousado, que a autora enfrenta com indisfarçável volume de pesquisa e sensível perspectiva cultural, além de, formalmente, arriscar o enquadramento do “caos” aos estatutos dos musicais. Fugindo de cronologias e das situações em sequência, Daniela Pereira dividiu o texto em três partes, entre os anos de 1967 e 1969, em meses desordenados, e sugerindo aos espectadores, antes do início do espetáculo, que decidam a ordem de apresentação. Desta forma, compromete a plateia com a estrutura desconexa de tempo  e com a visão anti-realista de cada quadro. Ainda que tal composição dramatúrgica seja atraente e provocante para a convenção dos musicais, ainda paga tributo ao apelo à trama e situações evolutivas. A dramaturgia de maior impacto e de efeito cênico mais envolvente está na trilha de Felipe Vidal e Luciano Moreira. Em 13 composições originais em que citações incidentais de compositores populares e escritores eruditos se desdobram em letras de inspiração tropicalista e força poética, estabelece narrativa musical, que em paralelo a comentar a ação, ganha autonomia sonora no lirismo e contundência de letras e música. A registrar, a provocação de “Frente pluripansexual”, a beleza de “Tema de Ana”, o tropicalismo de “Portas abertas” e “O meu lugar é aqui”, e o psicodelismo de “Cabeça mate”. A montagem de Felipe Vidal reproduz uma partitura cênica de inspiração tropicalista. São imagens que sugerem a capa do disco “Tropicália” e reveem a cena de abertura do segundo ato de “O Rei da Vela” na encenação de José Celso Martinez Correa. Esses fragmentos visuais têm tratamento dramático, não evocativo, o que nem sempre o diretor consegue nas cenas mais descritivas. A caracterização do elenco, tanto no figurino quanto no incômodo uso de perucas, restringe a atuação ao esforço de se assemelhar à realidade. A cenografia de Aurora dos Campos e a iluminação de Tomás Ribas dão discreto relevo à ambientação. A vigorosa direção musical de Marcelo Alonso Neves se impõe ao coro de atores-cantores-instrumentistas em coletiva e harmoniosa sintonia.