Ano de Fartura e Carência
O ano teatral carioca foi marcado por fartura e
carência. Depois de algumas temporadas em que o número de estréias ficou
restrito às limitações de patrocínio, em 2012 a ampliação das fontes de
financiamento permitiu o aumento de estréias, que esbarrou na baixa
disponibilidade de espaços. Com poucas salas para abrigar quantidade crescente
de estréias, as montagens são obrigadas a se restringir à permanência curta em
cena, muitas com apenas três semanas de duração, o que denuncia a falta de
teatros e relembra que há que ampliar a relação da política de fomento com a
construção de casas de espetáculo. A qualidade do que se produziu também se
expressa em números significativos, já que algo como 10% das novidades nos
palcos mereceram destaque por valorizar a criação e a inventividade. Os
diretores demonstraram que estão em processo de consolidação de estilos com
forte assinatura e instigante linguagem cênica. Michel Melamed eliminou a
palavra em Adeus à Carne para
radiografar, através de desfile de escola de samba, a condição um tanto trágica
da brasilidade. Felipe Hirsch
enredou personagem à procura de
sua identidade em O Livro de Itens do
Paciente Estevão. Paulo de Moraes mergulhou no inconsciente de uma mulher
em A Marca da Água. Marcio Abreu
traduziu com especial sensibilidade o universo familiar de Joël Pommerat em Esta Criança. Monique Gardenberg e
Michele Matalon reproduziram no palco a estranheza das páginas de livro de
Haruki Murakami em O Desaparecimento do
Elefante. Moacir Chaves prosseguiu na encenação de documentos históricos em
Negra Felicidade e Bruce Gomlevski se
anunciou bem na direção de O Homem
Travesseiro.
Os autores se revelaram inquietos, todos, e
promissores, alguns. Pedro Brício criou espaço pulsantemente sóbrio em Breu, demonstrando maturidade e domínio
da escrita. Maurício Arruda e Paulo de Moraes consolidaram profícua parceria em
A Marca da Água, enquanto Pedro
Kosovski prossegue em Cara de Cavalo
arejada trajetória como dramaturgo. E a grande surpresa do ano foi a
inteligente e habilidosa construção de Julia Spadaccini em Quebra Ossos. Na área dos intérpretes, as atrizes se destacaram com
vibrantes, rigorosas e sutis atuações, como a de Renata Sorrah em plena maturidade em Esta Criança e da dupla vigorosa Drica Moraes e Mariana Lima em A Primeira Vista. E de Kelzy Ecard, com
delicada emoção em Breu, e de Simone
Spoladore em driblada composição em Depois
da Queda. Patrícia Selonk capturou a fluidez de personagem em suspensão em A Marca da Água. Fernanda de Freitas,
Marjorie Estiano e Maria Luisa Mendonça deixaram boas lembranças em O Desaparecimento do Elefante. Flávia
Zillo foi a revelação de O Bom Canário. Entre os atores, o espectro de boas
intervenções varia da autoridade de Marco Nanini em A Arte de Abordar seu Chefe Para Pedir Aumento às intensas
participações de Tonico Pereira em Volta
ao Lar e O Homem Travesseiro.
Leonardo Medeiros se mostrou integrado, visceralmente, à saga da perplexidade
do personagem inominado de O Livro de
Itens do Paciente Estevão. Caco Ciocler, Kiko Mascarenhas e Rafael Primot
formaram trio de excelência em O
Desaparecimento do Elefante. Ranieri Gonzalez provou em Esta Criança a amplitude de seus meios
expressivos.
A cenografia alcançou um ponto alto de
sofisticação, não apenas na concepção, mas também na execução. Bia Junqueira,
praticamente co-dirigiu Adeus à Carne,
com sua explosão de imagens criadas para um palco enganosamente vazio. Bia
também foi responsável pelo flexível cenário
de Modéstia. Paulo Moraes encontrou a
ambientação perfeita para A Marca da Água
e Vandré Silveira reinventou o universo do artista plástico Farnese de
Andrade em Farnese da Saudade. Daniela Thomas carimbou o
seu selo em O Livro de Itens do Paciente
Estevão e O Desaparecimento do
Elefante. Fernando Marés deu traço definitivo à cenografia de Esta Criança, completada pela excelente
iluminação de Nadja Naira. E Maneco Quinderé se provou mago da luz em vários
espetáculos: A Primeira Vista, O Outro Van Gogh, entre outros.
O Rio ficou, uma vez mais, fora do circuito dos
grandes espetáculos que circularam por outras capitais do país. Porto Alegre e
São Paulo receberam montagens do Berliner Ensemble e Bob Wilson trouxe três
espetáculos, com destaque para A Ópera
dos Três Vinténs, uma explosão de rigor e técnica admiráveis. O clássico do belga Jan Fabre, O Poder da Loucura, que investiga o
recondicionamento das convenções teatrais, expandindo os limites e as
potencialidades da interpretação, passou ao largo do Rio. Em parte esse desvio
de rota foi compensado pela permanência e boa curadoria do festival Tempo, uma
luz em meio à escuridão das visitas internacionais.
macksenr@gmail.com