Monólogos
da Vida Contemporânea
Crítica/
A Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe Para Pedir Aumento
Marco Nanini exercita a afinação de seus instrumentos interpretativos |
O
francês George Perec, autor do texto em cena no Centro Cultural dos Correios, é
um manipulador de palavras, que as combina com efeitos verbais em série para
desestruturar seus significados. Nesta preleção, exposta em vários módulos e
meios de se vocalizar um pedido, Perec acomoda em repetidas formas de uma mesma
situação, tornando-a única. Chegar ao chefe com a reivindicação de aumento
multiplica-se na oferta de várias possibilidades de o fazer, condicionando-as
às constantes mudanças do ambiente e expondo-as às diversas circunstâncias,
desde a probabilidade do patrão não estar na sala no momento, até a reação
receptiva ou negativa da demanda. A sucessão de fatores, possíveis ou
hipotéticos, impertinentes ou tímidos, agressivos ou derrotados, é submetida à
inclemência do tempo, que determina a medida real da evolução narrativa. Perec
faz crítica ao corporativismo empresarial e ao poder de desgastar o material
humano na engrenagem industrial. O seu humor, construído a partir de
organização sequencial de palavras e situações redundantes, ao chegar ao palco
se oferece generosamente como material a um intérprete com recursos expressivos
sofisticados e domínio das nuances e flexibilidades verbais de discurso veloz e
intenso. A montagem de Guel Arraes contou com ator capaz de atender à
respiração sôfrega de texto armado como jogo de peças semelhantes em tabuleiro
escorregadiço. O diretor se cercou, além da certeira escolha do intérprete, de
ótima tradução de José Almino, inteligente direção de arte e cenografia de Bia
Junqueira, do bom acabamento do vídeografismo de Batman Zavarezet, da precisa
iluminação de Beto Bruel e da música de Berna Ceppas. Estabelecida a
ambientação técnica, restou ao diretor propiciar a Marco Nanini as
condições para que esse leão de força teatral se lance à arena, esgrimando
as palavras com as suas melhores armas. Ao contrário do que se assiste em
grande parte dos monólogos, em que os atores praticam exercício pendular de
histrionismo e vaidade, Nanini pratica exercício de afinação de seus
instrumentos interpretativos. Não há excessos, sobras ou gorduras em sua
atuação, tão somente detalhamento, sutileza e elegância, agilidade e gradativa
mudança de tons e de dosagens. Meios capazes de oferecer em toda a extensão o
humor, a ironia e a difusa melancolia de Perec. Um trabalho de extraordinário
contorno expressivo e fina essência interpretativa.
Crítica/
Ausência
Luis Melo enfrenta a luta pelo gesto poético |
O
monólogo com Luis Melo, em cena no Teatro Sesc Ginástico deve ser avaliado como
produção do grupo Dos à Deux com ator que não pertence a companhia. É um
convidado. O trabalho desse grupo, que nasceu na França e só recentemente se
radicou no Rio, mantém estreita ligação com Paris, a cidade em que foi fundado
em 1990. André Curti e Artur Ribeiro construíram estética teatral em que a
palavra é eliminada e o corpo, através do gesto teatral, se impõe como a
própria narrativa. Ao longo de mais de duas décadas e de quase uma dezena de
espetáculos, o Dos à Deux
mantém
suas características com montagens que têm recebido merecido reconhecimento. Ausência,
com a participação de um ator, essencialmente, dramático, senão
desvia o grupo do seu caminho, ao que parece segue outra trilha. Em cena estão
a mesma criação de imagens e a cenografia como instalação plástica, o que
talvez falte seja o ajuste do intérprete à linguagem artística-gestual.
E não se deve atribuir somente ao ator tal desajuste, mas igualmente à
concepção geral, que não alcança suas projetadas idéias. A começar pela
narrativa, que a julgar apenas pelo que se vê em cena, não pode ser
inteiramente situada, a não ser que se leia a sinopse no programa. O homem
solitário que vive numa metrópole num futuro não muito distante, é acossado por
epidemias de ratos, falta de ar e água, vivendo num cômodo semidestruído na
companhia de um peixe de aquário. O cenário de Fernando Mello da Costa, um
emaranhado de canos velhos e de engenhocas várias, tem desenho funcional
e inventivo, mas é, justamente, esse penetrável
que sufoca a montagem. Luis Melo, em movimentos lentos e gestos, ora
contidos, ora expandidos, percorre esse ambiente como se estivesse mecanizando as
ações. O gesto não se desenha, é rígido, voltado para procurar a função, e não dramatizá-la. Não se quer
o ator como mímico, mas que empreste ao corpo a representação que pede a
ausência da palavra. São movimentos que não se explicam, em que a dramaticidade se concentra na execução
(matar os ratos, construir figura feminina com os despojos de que dispõe), sem
que transmita a tensão de quem vive um fim, sobrevivente de uma catástrofe. Até
mesmo nas cenas mais poéticas (o final e a convivência com o peixe), o
ator não encontra maior intimidade com o estilo da dupla de diretores da Dos à
Deux.