Fiac - Bahia
Na linha do tempo dos festivais de teatro
brasileiros, o Fiac (Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia) é um dos
mais recentes, com cinco anos de existência, apenas dois mais do que o carioca
Tempo. Nesta edição, o Fiac demonstrou que está fixado no calendário cultural
de Salvador, e que a curadoria mantém sua inquietação em relação à
multiplicidade de tendências da cena contemporânea internacional, às variantes
estilísticas do teatro nacional e à amostragem da produção baiana. Ao buscar
uma unidade nesses três planos, para
além das características próprias de cada um deles, o Fiac atingiu e ampliou sua
platéia que ocupou por dez dias os espaços teatrais da cidade. Das montagens
brasileiras, destacaram-se Isso Te
Interessa?, da Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba e O Jardim, da Cia Hirto de São Paulo. Da
Bahia, registre-se Arbítrio, adaptação
de Sargento Getúlio, romance de João
Ubaldo Ribeiro, Entre Nós – Uma Comédia
Sobre a Diversidade, e O Circo de
Solenildo, espetáculo originário de Vitória da Conquista.
Yo No Soy Bonita: rituais litúrgicos de negação |
Yo No Soy Bonita a instalação performática da espanhola Angélica
Liddell, que no Fiac foi apresentada no pátio central do Forte do Barbalho,
construção do século 17, encravada no bairro do mesmo nome. Ocupando a
terça parte dessa área central, com uma das paredes do quadrilátero iluminada
com luz verde, em contraste com a tenda armada com a arquibancada para um
público de pouco mais de 200 espectadores, objetos (garrafas de cerveja, um coelho
empalhado, uma baia com belo cavalo branco, vivo, e colchões usados) se distribuem
pela área, contrastando a bizarrice seletiva do conjunto com a beleza decante e
histórica do entorno. Superado o primeiro impacto do cenário arquitetônico,
a performance de Angélica Liddell não provoca tantas reações quanto a
experimentada diante da ambientação que teve em Salvador. Marcadamente
autobiográfica, reproduz a experiência de uma mulher, abusada sexualmente
quando criança, submetida a agressões morais e sociais na juventude, reprimida
por instituições militares e religiosas, e esgotada existencialmente aos 46
anos. A atriz-personagem percorre cada um desses momentos, impulsionada pela
vontade de se expor, de exibir tais vivências. Nesse mergulho na desconstrução
do indivíduo, Liddell se apropria dos signos do universo que a violentou, reutilizando-os
com os mesmos instrumentos que a feriram. Tomando posse do
masculino que a amesquinhou, física e moralmente, reinvindica para seu corpo as
mesmas armas dos homens que a violentaram. Para tanto, investe contra o corpo, mutilando-se
e alimentando-se do próprio sangue, em metáfora da ceia cristã, mergulhando aos
mãos em leite fervente, sugerindo sexualidade animalizada em litúrgicos rituais
de negação. Antes que provocar choques moralizantes ou provocativas imagens de
dessacralização de comportamentos reprimidos, Yo No Soy Bonita se
circunscreve ao plano expositivo, buscando em secundárias referências ao cinema
de Luis Buñuel e a imagística da religiosidade espanhola o que não consegue transpor,
em emoção e corporidade para sua sufocante biografia.
Asalto Al Agua Transparente: aposta frustrada |
O México tem aportado nos festivais de teatro
brasileiros com insistente frequência, forma de apresentar ao nosso público a
diversidade da sua produção e a complexidade social de um país em tórrida ebulição.
Em Salvador, o grupo Lagartijas Tiradas al Sol com Asalto Al Agua
Transparente revela como a
Cidade do México deságua seus problemas desde os astecas em paralelo à história
de um casal que vive a sua caótica atualidade urbana. Com muitas estatísticas,
compilação histórica e ausência de sustentação para o drama do casal, o Asalto
é ingênuo como dramaturgia e primário como realização. A participação do
espetáculo no Fiac, talvez se explique por essa onda mexicana que invade as
mostras nacionais, que neste caso, foi uma aposta frustrada.
Too Late: convergências para a sala de ensaio |
Too
Late! (Antígone) Contest #2, produção italiana do Teatro Motus, circula pelos desviantes e incertos caminhos
do teatro contemporâneo. Vinheta cênica, esquete-cabeça, convergência de
linguagens, teatro de intervenção, fresta aberta para sala de ensaio, essa experiência
provocativa de 55 minutos não cessa de lançar à platéia propostas que se
integram de maneira excludente. A tragédia de Sófocles, aparentemente mero
pretexto, se revela a base deflagradora. Os embates entre os dois atores – a
italiana Silvia Calderoni e o sérvio Vladimir Aleksic – se transmutam, em
Antígona, em Creonte, em cães, em filha e pai, em intérpretes de um teatro que
não consegue ultrapassar os escombros de guerras ou as máscaras de políticos.
Os papéis que se entrelaçam, mediados por elasticidade corporal, desvendamento
de truques para sujar formalismos, numa sequência que prescinde de
lógica narrativa. Too Late é um work
in progress, que à primeira vista soa arbitrário, e no entanto deixa
visível mecanismos e métodos do teatro para tocar em coisas do mundo, de um mundo que, cada vez mais, se aproxima de
mortes.
Salmo 91: sombrios relatos de um massacre |
Produção baiana, Salmo 91, texto de Dib
Carneiro Neto baseado no livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varela,
adapta em dez monólogos o depoimento de presos do pavilhão 9, onde ocorreu o
massacre de mais de 100 detentos. Cada um deles desenha com a própria história
a vida na prisão, em contundentes relatos. A versão do diretor Djalma Thürler,
com cenário de José Dias e iluminação de Pedro Dultra Benevides, é bastante
despojada visualmente para ressaltar a participação do elenco. E o maior trunfo
da montagem está, exatamente, nos intérpretes, ainda que alguns deles carreguem
demais na composição. Mas os atores – Fábio Vidal, Rafael Medrado, Duda Woyda,
Lucas Lacerda e Lúcio Tranchesi – demonstram consistente trabalho vocal e
corporal que faz de Salmo 91 um bom exemplar da atual produção de
Salvador.
Édipo: movimentos para rir do trágico |
A companhia portuguesa Chapitô apresentou montagem com
ótima repercussão do público, com versão de tragédia subvertida em impagável
comédia. Édipo, de Sófocles, se
desfaz do peso trágico através da leveza de movimentos livres de drama, da
exploração de imagens cômicas e de técnicas físico-circenses. O trio de atores
conta a inevitabilidade do destino de Édipo numa sequência de quadros em que a história é apoiada em cambalhotas e outros malabarismos
corporais. O que resulta em espetáculo de alcance popular, utilizando
linguagens expressivas inversas do trágico, manipuladas por vias contrárias.
Uma encenação que brinca com contradições e faz de seu uso divertido jogo
teatral.
macksenr@gmail.com