domingo, 7 de outubro de 2012

Festivais


Fiac - Bahia

Na linha do tempo dos festivais de teatro brasileiros, o Fiac (Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia) é um dos mais recentes, com cinco anos de existência, apenas dois mais do que o carioca Tempo. Nesta edição, o Fiac demonstrou que está fixado no calendário cultural de Salvador, e que a curadoria mantém sua inquietação em relação à multiplicidade de tendências da cena contemporânea internacional, às variantes estilísticas do teatro nacional e à amostragem da produção baiana. Ao buscar uma unidade nesses três planos, para além das características próprias de cada um deles, o Fiac atingiu e ampliou sua platéia que ocupou por dez dias os espaços teatrais da cidade. Das montagens brasileiras, destacaram-se Isso Te Interessa?, da Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba e O Jardim, da Cia Hirto de São Paulo. Da Bahia, registre-se Arbítrio, adaptação de Sargento Getúlio, romance de João Ubaldo Ribeiro, Entre Nós – Uma Comédia Sobre a Diversidade, e O Circo de Solenildo, espetáculo originário de Vitória da Conquista.

Yo No Soy Bonita: rituais litúrgicos de negação
Yo No Soy Bonita a instalação performática da espanhola Angélica Liddell, que no Fiac foi apresentada no pátio central do Forte do Barbalho, construção do século 17, encravada no bairro do mesmo nome. Ocupando a terça parte dessa área central, com uma das paredes do quadrilátero iluminada com luz verde, em contraste com a tenda armada com a arquibancada para um público de pouco mais de 200 espectadores, objetos (garrafas de cerveja, um coelho empalhado, uma baia com belo cavalo branco, vivo, e colchões usados) se distribuem pela área, contrastando a bizarrice seletiva do conjunto com a beleza decante e histórica do entorno. Superado o primeiro impacto do cenário arquitetônico, a performance de Angélica Liddell não provoca tantas reações quanto a experimentada diante da ambientação que teve em Salvador. Marcadamente autobiográfica, reproduz a experiência de uma mulher, abusada sexualmente quando criança, submetida a agressões morais e sociais na juventude, reprimida por instituições militares e religiosas, e esgotada existencialmente aos 46 anos. A atriz-personagem percorre cada um desses momentos, impulsionada pela vontade de se expor, de exibir tais vivências. Nesse mergulho na desconstrução do indivíduo, Liddell se apropria dos signos do universo que a violentou, reutilizando-os  com os mesmos instrumentos que a feriram. Tomando posse do  masculino que a amesquinhou, física e moralmente, reinvindica para seu corpo as mesmas armas dos homens que a violentaram. Para tanto, investe contra o corpo, mutilando-se e alimentando-se do próprio sangue, em metáfora da ceia cristã, mergulhando aos mãos em leite fervente, sugerindo sexualidade animalizada em litúrgicos rituais de negação. Antes que provocar choques moralizantes ou provocativas imagens de dessacralização de comportamentos reprimidos, Yo No Soy Bonita se circunscreve ao plano expositivo, buscando em secundárias referências ao cinema de Luis Buñuel e a imagística da religiosidade espanhola o que não consegue transpor, em emoção e corporidade para sua sufocante biografia.
Asalto Al Agua Transparente: aposta frustrada
O México tem aportado nos festivais de teatro brasileiros com insistente frequência, forma de apresentar ao nosso público a diversidade da sua produção e a complexidade social de um país em tórrida ebulição. Em Salvador, o grupo Lagartijas Tiradas al Sol com Asalto Al Agua Transparente revela como a Cidade do México deságua seus problemas desde os astecas em paralelo à história de um casal que vive a sua caótica atualidade urbana. Com muitas estatísticas, compilação histórica e ausência de sustentação para o drama do casal, o Asalto é ingênuo como dramaturgia e primário como realização. A participação do espetáculo no Fiac, talvez se explique por essa onda mexicana que invade as mostras nacionais, que neste caso, foi uma aposta frustrada.

Too Late: convergências para a sala de ensaio
Too Late! (Antígone) Contest #2, produção italiana do Teatro Motus, circula pelos desviantes e incertos caminhos do teatro contemporâneo. Vinheta cênica, esquete-cabeça, convergência de linguagens, teatro de intervenção, fresta aberta para sala de ensaio, essa experiência provocativa de 55 minutos não cessa de lançar à platéia propostas que se integram de maneira excludente. A tragédia de Sófocles, aparentemente mero pretexto, se revela a base deflagradora. Os embates entre os dois atores – a italiana Silvia Calderoni e o sérvio Vladimir Aleksic – se transmutam, em Antígona, em Creonte, em cães, em filha e pai, em intérpretes de um teatro que não consegue ultrapassar os escombros de guerras ou as máscaras de políticos. Os papéis que se entrelaçam, mediados por elasticidade corporal, desvendamento de truques para sujar formalismos, numa sequência que prescinde de lógica narrativa. Too Late é um work in progress, que à primeira vista soa arbitrário, e no entanto deixa visível mecanismos e métodos do teatro para tocar em coisas do mundo, de um mundo que, cada vez mais, se aproxima de mortes.

Salmo 91: sombrios relatos de um massacre 
Produção baiana, Salmo 91, texto de Dib Carneiro Neto baseado no livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varela, adapta em dez monólogos o depoimento de presos do pavilhão 9, onde ocorreu o massacre de mais de 100 detentos. Cada um deles desenha com a própria história a vida na prisão, em contundentes relatos. A versão do diretor Djalma Thürler, com cenário de José Dias e iluminação de Pedro Dultra Benevides, é bastante despojada visualmente para ressaltar a participação do elenco. E o maior trunfo da montagem está, exatamente, nos intérpretes, ainda que alguns deles carreguem demais na composição. Mas os atores – Fábio Vidal, Rafael Medrado, Duda Woyda, Lucas Lacerda e Lúcio Tranchesi – demonstram consistente trabalho vocal e corporal que faz de Salmo 91 um bom exemplar da atual produção de Salvador. 

Édipo: movimentos para rir do trágico
A companhia portuguesa Chapitô apresentou montagem com ótima repercussão do público, com versão de tragédia subvertida em impagável comédia. Édipo, de Sófocles, se desfaz do peso trágico através da leveza de movimentos livres de drama, da exploração de imagens cômicas e de técnicas físico-circenses. O trio de atores conta a inevitabilidade do destino de Édipo numa sequência de quadros em que a história é apoiada  em cambalhotas e outros malabarismos corporais. O que resulta em espetáculo de alcance popular, utilizando linguagens expressivas inversas do trágico, manipuladas por vias contrárias. Uma encenação que brinca com contradições e faz de seu uso divertido jogo teatral.      

                                                    macksenr@gmail.com