Crítica/
Cara de Cavalo
Confronto entre a arte e a violência |
O nome do personagem que dá título ao espetáculo
em cartaz na Arena do Espaço Sesc é o de bandido que na década de 60 matou
policial de grupo de extermínio, denominado Homens de Ouro. Marginal que vivia
da exploração de mulheres e do jogo do bicho, abrigado na extinta favela do
Esqueleto (onde onde funciona o campus da Uerj, no Maracanã), a história de
Cara de Cavalo se reconstitui por Pedro Kosovski, através do policial
remanescente da sua captura e morte. A investida de Kosovski esbarra em algumas
dificuldades de integrar questões da arte com a realidade da violência e de estabelecer
forma narrativa que documente e abrigue a vontade de depor sobre a expressão
artística contemporânea. A dramaturgia para tal interrelação acumula diversos
planos (tragédia carioca rodriguiana, linguagem da cultura pop) e fragmentos
estéticos (referências plásticas, exibição de vídeos, música interveniente),
levando à desmontagem dos tempos e da linearidade sequencial. Cara de Cavalo, o
personagem, é pretexto para se falar das possibilidades da arte numa época de diluições
e incertezas, de identificações plurais dos meios. Pedro Kosovski carrega
tantas e tão variadas dúvidas, lançando-as de maneira algo anárquica,
utilizando recursos da ambientação cultural e geracional envolventes, relacionando
o que deseja dizer com a demonstração de como é difícil fazê-lo. É neste jogo,
que Cara de Cavalo se constrói como
teatro, e que o diretor Marcos André Nunes traduz no palco com igual espírito
pulsante e desestruturante proposto pelo texto. Mesmo que o vídeo com o
depoimento do policial e a consequente entrevista com a jovem repórter possam
deixar a impressão de desabafo tortuoso, a tradução cênica do diálogo entre a obra de Hélio Oiticia e a marginalidade como arte é um belo
momento. O elenco, com diferentes níveis de amadurecimento, tem em Saulo
Rodrigues e Oscar Saraiva maior domínio de suas atuações, enquanto entre os de
menor experiência, como Remo Trajano, Raquel Villar e Álvaro Diniz, o destaque
é de Carolina Chalita que empresta tensão à amante de Cara de Cavalo. Ricardo
Kosovski, como o policial entrevistado, dosa a intensidade agressiva do
personagem com as contradições que precisa revelar em meio a seus confllitos
internos. O ator se equilibra com extrema sensibilidade entre esses extremos,
desenhando interpretação emocionalmente depurada.
co
Crítica/ Pinteresco
O difícil humor que aparece nas entrelinhas |
A dramaturgia de Harold Pinter tem a sutieza da
entrelinha, daquilo que se revela pelo que aparentemente esconde. O que é dito
parece adquirir os significados que se lhe emprestam diferentes interpretações.
O realismo ganha contornos de naturalismo absurdo e diálogos delirantes,
absolutamente corriqueiros em sua banalidade verdadeira, desconsertam pelo
verismo. Pinter não revela, dissimula. Não mente, apresenta. Não expõe,
entreolha. Pinteresco, em cartaz no
Solar de Botafogo, é uma seleta de sua dramaturgia de espelhos invertidos em
pequenas refrações. Em doze textos curtos, cortinas
de sua obra dramática, permite que se
debruce sobre Pinter em outro plano formal. Lá estão os mais característicos
elementos de sua dramática, num
painel fracionado em historietas, ora cômicas, ora picarescas, difusamente políticas ou satiricamente britânicas,
mas coerentemente pinterescas. São
flagrantes de um universo que captura, como peças soltas de quadro mais amplo, pequenos
pedaços de visão perversamente lúcida. A maioria – Ponto de Ônibus, O Último a
Sair, Só Isso e Afora Isso – é
uma aragem que somente balança as tempestades maiores das peças mais ambiciosos
de Pinte. Há em algumas deles apenas a dimensão de uma vinheta, como em Só Isso, em que a contundência do
dramaturgo se realiza em poucos minutos. A condensação de perspectiva de mundo
nesses esquetes, exteriormente despretensiosos, demonstra segurança e certeza do autor em relação à sua
criação. A transposição, seja na tradução de Jacqueline Laurence e Ísio
Ghelman, seja na direção de Ary Coslov, procura trazer o universo de Pinter
para plateia, cultural e geograficamente, distante. A montagem consegue
aproximar essa dramaturgia em fatias da unidade textual de Pinter, mas somente
parcialmente. Difícil de verter para nosso humor mais direto e menos
construído, os esquetes são filtrados e aclimitados à nossa espontaneidade para o riso. Os doze, não
importa suas peculiaridades e meios tons, recebem o mesmo tratamento, como se as
sutilezas das entrelinhas (e o humor pode estar, exatamente, nessa área
intermédia) devessem ser explicitadas. Uma das brincadeiras de Coslov é a
extensão das pausas, uma das mais evidentes marcas do teatro de Pinter, a que o
diretor recorre sem parcimônia. No estilo interpretativo do elenco, o diretor não
domestica o temperamento exuberante do ator brasileiro, e deixa, de certo modo,
que solte a sua tendência ao histrionismo. Não que os atores estejam deslocados,
apenas estilizam linha de atuação em sentido contrário ao humor das cenas
curtas. Savio Moll com pequenas modulações entre os tipos que interpreta,
ressalta com discreta presença cômica alguns detalhes. Leonardo Franco intenta
dar conotação mais british a algumas
de suas intervenções, às vezes com habilidade, outras com menos resultado.
Marina Vianna ultrapassa a marca da contenção, levando um pouco mais adiante os
traços das personagens que interpreta. Alice Borges, uma comediante de máscara
e gestos elásticos, exerce suas qualidades de modo generoso, com dois quadros
em que se destaca pela compreensão que
empresta a figuras entre o melancólico cotidiano da solidão e o patético do
riso sem saída. Ainda assim, a atriz não escapa da intensidade da comicidade
nacional.
Crítica/
A Moringa Quebrada
Da Alemanha, com escalas, para o Nordeste |
Os clássicos, como este alemão dos 1800 em cartaz
na Sala Paulo Pontes do Theatro Net Rio, não devem ser vistos pelo teatro contemporâneo
como relíquias a preservar, a fixar como intocáveis. O clássico é assim
denominado pelo que permanece como matriz, infensa a variantes temporais ou a reavaliações
de ocasião. A Moringa Quebrada é
clássica, não só por se enquadrar nessas categorias, como por seu autor,
Heinrich von Kleist, ser um dos representantes mais expressivos de movimentos
literários da Alemanha de sua época, e atento observador da dramaturgia mundial.
Neste texto, Kleist mostra o jogo mentiroso das ações e instituições humanas,
sob a descrença e hipocrisia que as comandam. Nesta comédia, em que não há
heróis, muito menos complascência com as falcatruas das atitudes
dissimuladoras, a trama se desenvolve, na melhor tradição de Molière, como pantomima
de malandragens. Ao modo germânico, evidentemente. Na adaptação e direção de
Gustavo Paso, muito do que o original conserva como classicismo se perde em inadequada transposição nordestina, rascunhada
pela metade e sem qualquer preocupação em manter o espírito da raíz. A versão
se reduz, basicamente, à ação como tal, e ainda assim, enfraquecida, não só
pela diluição dos diálogos, indissociáveis do cerne da trama, como também pela postiça
e incompleta regionalização. O diretor procura, coerente com o adaptador,
tornar mais leve a montagem, marcando
o elenco num registro de comicidade pouco elaborada, sugerindo gestual e vozes acentuadamente
carregadas de humor explícito. A ambientação terrosa e os figurinos fora de
tempo e de lugar acrescentam ao desencontro geral com seu eixo expressivo, mais
esses dois desacertos. O elenco, com dois atores mais experientes (Claudio
Tovar e Samir Murad) e os demais com visível inexperiência, executa seus papéis
na medida de suas limitadas possibilidades.
Crítica/ Véspera
Comédia familiar fora de esquadro |
Camila Appel, autora desta tragicomédia em cartaz
no Teatro Maison de France, parece ter escrito seu texto sem saber a razão para
se lançar a tal empreitada, e sem encontrar rumo para desconexa trama. Há tantas
investidas, vagas já de início, que os seus desdobramentos em situações
indefinidas, confusas, dispersas, nulas, deixam pouca margem de reação, a não
ser de indiferença, diante dos 60 minutos de tantas platitudes. A narrativa,
que confina família à sua casa, na véspera do Natal, quando a falta de luz
isola cada um na sua própria esquizofrênica convivência, não conduz os
personagens a lugar algum. Appel, aparentemente, imaginou ter escrito peça de
absurdo, ou então comédia familiar de contornos levemente trágicos. São, pelo
menos estas as indicações que se pode inferir do acúmulo de personagens
caricaturais e suas obsessões vazias, das ações rocambolescas que se assemelham
às das novelas baratas e de tipos que irrompem na cena sem que se saiba por
que, exatamente, vieram, e muito menos por que sairam. Nesta Véspera, tudo parece fora de esquadro. O
cenário de Márcio Vinicius, com a cortina transparente que se interpõe à
plateia, é dos equívocos visuais o mais evidente. A direção de Hudson Senna
embarca nos atropelos do texto, criando
encenação atabalhoada sem qualquer marca autoral. Do elenco – Cris
Nicolotti, Tadeu Di Pyetro, Juçara Morais, Silvia Lourenço e Rafael Maia – fica
a sensação de que se empenhou sem muita convição.
Crítica/ Eu Era
Tudo Pra Ela E Ela Me Deixou
Piadas em direção ao público cativo |
Esse show-comédia em que o ator Marcelo Médici
interpreta nove tipos e que as mudanças de figurino são tão rápidas que se
tornam integrantes do humor do espetáculo, vive desses efeitos das variações. O
público que vai ao Teatro das Artes está à espera de rir da sucessão de figuras
e gargalhar de piadas que o ator em travesti ou como o indefectível bêbado se
esforça para compor. Há um texto, assinado por Emilio Boechat, que resulta em
extensa narrativa para amarrar e disfarçar o aspecto de show de humor. Eu Era Tudo Pra Ela e Ela Me Deixou é
tão longa quanto o seu título e tão auto explicativa quanto aquilo que quer
divulgar. Marcelo Médici é um comediante com recursos múltiplos, capaz de
atender à expectativa de um público que já se tornou cativo de seu estilo. Para
esse público, Médici oferece o espetáculo que dele esperam.
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