Mirada/
Santos
Amarillo: México |
Pela
segunda vez aconteceu o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc
Santos que durante dez dias reuniu espetáculos de 14 países com ênfase na
produção mexicana, trazendo aos teatros da cidade litorânea paulista oito diferentes
grupos. Além dos brasileiros, Galpão mineiro, XIX paulista, Companhia
Brasileira de Teatro curitibano, e a Cia dos Atores e Amok cariocas, vieram a
Santos encenações de países que dificilmente se apresentam no Brasil, como
Bolívia, Paraguai, Peru, e tantos outros, que apenas eventualmente aparecem por
aqui em festivais, como Colômbia, Espanha, Chile, Uruguai e Portugal. O corpo
de curadores propõe extensa abrangência geográfica dentro desta idéia de iberoamericanidade, ponto de
convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora
com pretensões de integrar correntes internacionais. O conselho de curadores
admite “não haver um eixo conceitual que determine
aprioristicamente uma determinada preocupação ou aponte um percurso específico
de pensamento na composição do programa. Sua elaboração leva em conta a
diversidade de tendências e estilos e procura abrir espaço tanto para novos
nomes e companhias ditas experimentais como para artistas consagrados e com
trajetórias sólidas, favorecendo o diálogo entre a tradição e a inovação.” Como
país homenageado, o México enfatizou um dos aspectos mais intensos da vida dos
que abandonam o país à procura de melhores perspectivas fora de suas
fronteiras. A emigração é tema de pelo menos três espetáculos que tratam,
direta e indiretamente, do assunto. O de maior destaque e de melhor repercussão
na mostra é Amarillo do Teatro Línea
de Sombra, performance-instalacão-dramática
em enquadramento sócio-político. O impacto visual já se revela ao entrar na
sala, quando a platéia se defronta com enorme painel-muro branco. O palco
despido, com as coxias visíveis, vai sendo ocupado por gestos mecânicos dos
atores, galões de água distribuidos plasticamente no espaço e dezenas de sacos
de areia, com o painel de fundo agigantando-se na sua impenetrabilidade
opressiva. Amarillo, a cidade texana, ponto de atração para os imigrantes
ilegais mexicanos, não é somente alvo de esperança de uma melhor sobrevivência,
mas desespero diante de impossibilidades. O imigrante se descobre alguém que
não existe. A falência das origens obscurece as perspectivas de futuras
afirmações identitárias. O apagamento do que se deixa na partida continua na
duvidosa e improvável chegada. O que poderia ser um teatro político raivoso e
sectário, se torna instalação cênica que usa meios expressivos sofisticados,
através dos quais, o desaparecimento do humano por razões políticas ganha
discurso intermediado por sensível recriação do real. Pulsante, Amarillo dá dimensão contemporânea ao
intervencionismo do teatro político, revigorando-o. Há possibilidade de próxima
temporada de Amarillo em São Paulo, e
somente em São Paulo.
Os Assassinos: México |
Também com viéis fortemente
politizante, Os Assassinos reflete a
violência disseminada na sociedade mexicana, vista como narrativa absurda. Com
visível influência da dramaturgia de Samuel Beckett, que se dilui em humor crítico
a costumes e a imagens populares, utiliza-se dos impasses sociais para desvendar
mecanismos violentos de estímulo a morte e a alienação da nacionalidade. Os
recursos cênicos do autor e diretor são múltiplos e dispersantes, no loquaz
espetáculo em que ao levantar questões sobre a evasão pela irrealidade de
falsos conceitos, se esvaziam as suas pretensões iniciais. A sensação é de uma
montagem para cuja recepção é necessário conhecer a ambientação social e
cultural que a envolve. De outro modo, e a julgá-la apenas teatralmente, se
parece a seleta de tendências que, apesar de algumas boas influências, não se realiza como unidade estilística. Mais do que
equidistante do público brasileiro, Os
Assassinos é um espetáculo árduo de se assistir. Suspeita-se que até mesmo
para o público mexicano.
Em outro registro, menos
pesado e carregado de intencionalidades reflexivas, O Dragão Dourado acompanha em torno de um balcão de restaurante
chinês, grupo de empregados que se esfalfa para atender a clientela. Para uma das
empregadas, imigrante que deixou a China e na volta, de maneira cruelmente
poética à terra dos pais, ilustra o caminho do retorno através das pequenas
histórias dos clients frequentes do restaurante. Com agilidade em cenas de
simultaneidade nervosa, a montagem atrai pelo humor arrebatado e dramaticidade
velada, em equilíbrio bem dosado.
Chaikka: Uruguai |
Do
Uruguai, adaptação de A Gaivota, de
Tchecov, confirma a infinita atração que esse texto extraordinário exerce sobre
a cena contemporânea. Para montá-lo na atualidade e nas várias latitudes culturais,
procura-se cercá-lo de invólucros que o renovem ou o lancem a novas correntes e
métodos. Nem sempre tais formatos resultam em espetáculos revigoradores ou que se
sustentem com adereços inúteis e desviantes. No caso de Chaika, título que a Complot Cia de Artes Escénicas Contemporáneas
de Montevidéu deu à sua versão de A
Gaivota, a leitura da dramaturga e diretora Mariana Percovith parece se
ajustar mais às características do grupo, do que propriamente intervir com
radicalidade no texto. Ambientada na arquitetura do teatro, com a ocupação de
seus vários espaços, a companhia se distribui pela plateia, na maioria do
tempo, e pelo palco, raramente, e em que o abrir e fechar da cortina determina
tempos dramáticos. Se a princípio a adaptação tem dificuldade em estabelecer
com menos obviedade os parâmetros do jogo, ao longo da montagem vai se encorpando,
e habilmente ressalta os melhores e menores desvãos deste definitivo debruçar
de Tchecov sobre vidas conduzidas pela sua representação.
A
Colômbia apresentou através da companhia La Maldita Vanidad, grupo com apenas
três anos de formação, mas que circula deste o ano passado por festivais
europeus e da América Sul, trilogia
hiper-realista, reunindo O Autor Intelectual, Os Autores Materiais e Como
Quer Que Queira. Cada um se volta para aspecto da realidade colombiana. O Autor Intelectual traça quadro bem explícito
de crime praticado por três rapazes contra o senhorio e que se desdobra quando
a diarista chega para o trabalho. Os
Autores Materiais se debruça sobre o destino de mãe idosa diante da omissão
dos filhos. E em Como Quer Que Queira,
os preparativos de festa de debutantes não obscurecem os movimentos mais
ameaçadores em torno da celebração. De realismo levado aos limites da
concretude cênica (cenário detalhado, alimentos preparados no palco,
interpretação que persegue o naturalismo), os colombianos expõem fraturas
sociais com meios próprios da fotografia narrativa.
Hamlet dos Andes: Bolívia |
Vindo
da cidade de Sucre, o Teatro de los Andes mostrou Hamlet dos Andes, que já
pelo título determina o alcance e a intenção de aclimatar a tragédia de
Shakespeare aos altiplanos bolivianos. Com trechos em quechua, uso de água,
caricatura de lutas livres e um certo experimentalismo
datado, esse Hamlet se assemelha, tanto quanto possível a uma tragicomédia
regional, quase uma curiosidade. O grupo, que existe há mais de duas décadas
numa cidade boliviana do interior, mantém vínculo com a sua geografia cultural,
inventando diálogo em que o que é produzido possa chegar a plateia,
estabelecendo linguagem comum. Pela
amostra desta encenação e pela permanência do grupo por tanto tempo é de se
acreditar que essa ponte tem se mantido com boa circulação em ambas as mãos.
O Nacional: Espanha |
Da
Espanha e sob a égide da tradicional Els Joglars, O Nacional marca a despedida do diretor e ator Albert Boadella, que
por 51 anos esteve à frente da companhia, como um depoimento-desabafo. Ainda
que a montagem já tenha alguns anos, O
Nacional é um testamento-panfleto de Boadella em relação ao estado da
cultura na Espanha e, secundariamente, sobre
a crise econômica que assola o país. Ao abrigar indigentes no prédio
arruinado da Ópera Nacional, um velho indicador de lugares do teatro decide
encenar com essa trupe de desvalidos a ópera Rigoletto. A ilusão que o teatro
propicia é levada ao paroxismo de transformar essa horda em metáfora da liberdade
da arte. Saltimbancos de pantomina imprecativa (Boadella vocifera contra secretarias
de cultura, intelectuais, prêmios, comissões, verbas), os atores demonstram
sólida técnica, numa montagem de longa duração (duas horas para repetidas e
recorrentes situações). Com cenas de beleza plástica, com final de efeito
cenográfico atraente, O Nacional se
alimenta do que o passado do grupo criou na sua longa carreira para reviver-se
num presente um tanto sombrio e desesperançado.
Do
Peru, o grupo Cultural Yuyacachkani volta ao tempo de um teatro político anacrônico
em Sem Título, Técnica Mista, em que
conjuga exposição, ou seria instalação, para usar terminologia mais
contemporânea, mesmo que em desacordo com as bases de tão envelhecido
espetáculo, com cenas que remontam ao realismo socialista soviético. Quadros
vivos que refletem mais ação política do que efetivamente teatral, a técnica
antes de se denominar de mista, deve ser chamada de única. À entrada da sala, o
espectador se defronta com textos e vitrines que expõem a história peruana do
ponto de vista das guerras que marcaram o país, da população indígena, registrando
comentários sobre ocupações recentes da presidência do país. Os atores,
estáticos como manequins, compõem a moldura. Ao se movimentar para dar vida às
várias menções estampadas na exposição, o elenco é conduzido em carrinhos,
acompanhados pela plateia que, de pé mais por mais de uma hora, é submetida ao
percurso pelas diversas etapas desse ingênuo agip-prop.
macksenr@gmail.com