Crítica/ A Marca
da Água
Mergulho na tortuosa mecânica do cérebro |
O
texto conjunto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes, que também assina a
direção de A Marca da Água, em cena
na Fundição Progresso, transita por áreas tão sutis como a memória, a solidão
compartilhada, o cérebro invadido pela doença, a procura da música interior e pelo
“espetáculo do nada” do cotidiano. Mergulhados em tantos e tão delicados
labirintos da existência, os autores constroem personagem, uma mulher que traz
desde a infância problema neurológico, que reconstitui seu percurso de volta à
origem, perseguindo a sonoridade aquosa que a acompanha desde sempre. O
aparecimento de surrealista peixe no fluxo da vida do casal é somente a eclosão
da viagem da mulher em torno de sentimentos, aparentemente delirantes, mas que determinam
os rumos daquilo que sente e da apropriação
das
peças soltas do puzzle do seu
passado. A inevitabilidade da morte, que é comum a todo humano, na personagem é
iminência. Sofrendo de crescente acúmulo de água no cérebro, não se submete a
qualquer tratamento, substituindo-o pela imersão e fidelidade à musicalidade
que enche a sua cabeça de sons vitais. O presente lhe parece vazio. O futuro é
semelhante ao mundo, sem perspectivas. Resta o passado como tempo de resgate. A
personagem recusa ajuda médica, já que não está à procura de cura, mas de
reconstruir a doença como metáfora da
própria vida. Os autores, aparentemente, se basearam em narrativa corrida, com
linha sequencial que levasse o percurso até a um fim (o ressurgimento do pai
náufrago). Esse tributo à coerência e
ao acabamento, talvez tivesse restringido o adensamento poético que na montagem
se traduz tão delicadamente com o elenco tocando acordeões, compondo o caminho da
partitura da música interior. Apenas um detalhe secundário em texto que se
corporifica pelo percurso, pelo mergulho no desequilíbrio para realizar o encontro,
aproximar-se de algum sentido de plenitude. Paulo de Moraes regula a cena na
mesma dimensão da escrita: poética, imagética e inconsciente. O diretor cria
imagens que estão desenhadas como abstrações do real, fortes o bastante para
impregná-las de significações evocativas, lançadas ao espectador como quadros
em movimento. O ritmo que imprime a esses quadros é que estabelece a
nervosidade da cena e o lirismo da ambientação. Como cenógrafo, Paulo de Moraes
traça com geometrismo a área da representação - painel de quadriláteros e tanque
retangular -, equilibrando a fisicalidade da água e a volatividade das
projeções de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca. Esse ambientação acondiciona
com suas linhas retas a tortuosa mecânica do cérebro. O elenco acompanha com
retilínea composição a racionalidade emocional do entrecho. Ricardo Martins,
Marcos Martins, Marcelo Guerra e Lisa E. Fávero atuam como um coro harmônico de
muitas vozes afinadas para que Patrícia Selonk detalhe o seu instigante solo. A atriz, sem dramatismos e exterioridades,
mergulha no túnel de águas revoltas da personagem com rigor racional e fina
emocionalidade. Demonstração da maturidade e inteligência da intérprete.
Crítica/ A
Gaivota
Longe de desvendar os mistérios de uma dramaturgia |
Tchecov dizia que sua dramaturgia tinha humor.
Mais do que uma boutade, o autor russo
indicava com a afirmação que seu teatro não era feito de camada uniforme. Com
várias e embutidas camadas, a cada encenação de suas peças, pode se descobrir
rumos e outros atalhos interpretativos. Nada em Tchecov aponta para o unívoco,
para um só caminho. Há comédia, drama, e se quisermos até melodrama, mas o que
sobressai de todas os indícios estilísticos é o impenetrável mistério da
existência, e é dele que se está sempre perseguindo a cada encenação. A versão
de Bruno Siniscalchi, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prossegue, a seu modo, no
desvendamento dos meandros do mistério tchecoviano.
Fica distante de tocar no mundo incompleto dos personagens, nos silêncios aos
quais se pode atribuir tantos ruídos e no vazio dos gestos e no ardor das
palavras. A perspectiva do diretor é a de sintetizar, eliminar o embate, a
interioridade, fracionar para reduzir e facilitar,
se interpor ao entrecho. Na tábula rasa a que se reduz a encenação de Siniscalchi,
abandonam-se vestígios de substrato e intenções de estabelecer atmosfera. A
idéia, se há alguma mais consistente, desvia-se para outra direção, não
exatamente para alguma opção palpável, perceptível para além do arbítrio, o que
somente subtrai, esvazia e empobrece. A ocupação cenográfica da totalidade do
palco e de parte da platéia com centenas de girassóis, se provoca impacto
inicial, se esvai pelo esgotamento monótono da visualidade e pelo pouco aproveitamento da
iluminação. E se todo esse desacerto não bastasse, o diretor conduz o elenco de
forma inexpressiva e descaracterizante. Se a princípio, imagina-se que alguns
atores seguem um naturalismo hesitante, em seguida percebe-se que cada um
parece decidir o que e como interpretar seus personagens. Julia Lund empresta
uma certa mutabilidade a Nina, o que Carla Ribas não consegue na padronização e
rigidez de sua Arkádina. Karina Teles, ainda que timidamente, dá vida a Macha.
Gabriel Pardal uniformiza, pela linearidade de sua atuação, o Trepliov. Thales
Coutinho está muito distante de qualquer abordagem concreta de Miedviênko, e
Ricardo Gonçalves contribui para a invisibilidade e o esfumaçamento da canalhice
de Trigorin.
macksenr@gmail.com